BEM-VINDOS A ESTE ESPAÇO

Bem-Vindos a este espaço onde a temática é variada, onde a imaginação borbulha entre o escárnio e mal dizer e o politicamente correcto. Uma verdadeira sopa de letras de A a Z num país sem futuro, pobre, paupérrimo, ... de ideias, de políticas, de educação, valores e de princípios. Um país cada vez mais adiado, um país "socretino" que tem o seu centro geodésico no ministério da educação, no cimo do qual, temos um marco trignométrico que confundindo as coordenadas geodésicas de Portugal, pensa-se o centro do mundo e a salvação da pátria.
__________________________________________________________________

segunda-feira, 8 de junho de 2009

OS OSSOS DA COLONIZAÇÃO (1)

“O que é importante é a história. Porque quando todos nós formos pó,- dentes e pedaços de pele- quando estivermos a dançar com os nossos próprios esqueletos- as nossas palavras poderão ser tudo o que restará de nós.” Alexandra Fuller em Scribbling the Cat-Travels with an african soldier.London 2005 Picador. (edição em inglês)

Em um ensaio anterior estabelecemos a diferença entre colonialismo e colonização. E exumámos os esqueletos do colonialismo. Agora vamos analisar os esqueletos da colonização: não estão em armários, como os do colonialismo, mas espalham-se por toda a Angola, sob o olhar desconsolado dos angolanos que sonharam sempre com uma melhoria que, infelizmente, tarda em aparecer. Por que perdeu Angola, em três dezenas de anos, todo um património em que se empenharam milhares de pessoas?
Ressalvando alguns aspectos negativos dos colonos, abordados em anteriores artigo(Os ossos do colonialismo) (A utopia de um novo Brasil em África), a colonização dos portugueses foi positiva, decorridos mais de 30 anos sobre o seu fim, com a poeira histórica já muito assente. Sobre os colonos, em uma manobra hábil da descolonização feita pelos militares portugueses , foram descarregados todos os anátemas do colonialismo. Mas este foi idealizado, normatizado e dirigido, sempre, sem um minuto de descanso, por Lisboa. Para os colonos foi descarregado o fardo desse colonialismo oco e antiquado, totalmente gizado e dirigido por Lisboa, embora eles não saiam isentos de culpa, por terem mantido uma passividade colaborante e de se terem aproveitado de leis injustas, especialmente as referentes ao trabalho compelido. Infelizmente o hábito de injustiças acaba por legitimizá-las, mas só para os que delas usufruem. Os colonos construíam, os oligarcas obstruíam, estes mentiam, aqueles acreditavam.
Foi o exército português, pela força das armas, que instituiu a soberania portuguesa em Angola. E ele viu-se obrigado a fazê-lo, pressionado por outros países europeus, sob a ameaça de “ se não queres, avanço eu”. À medida que as regiões iam sendo subjugadas, o exército consolidava a autoridade através do capitão-mor, sargentos que aceitavam permanecer em Angola. Cumpria-se, assim, o principal mandamento da Conferência de Berlim (1885): a ocupação efectiva. Mas militar, apenas. A ocupação civil só se efectivaria especialmente a partir de 1920.
Em 12 de Outubro de 1920 o major Norton de Matos tomou posse em Lisboa do cargo de Alto-Comissário de Angola. Este oficial de engenharia já tinha estado em Angola, em 1912, como Governador Geral. Esta posse foi o dealbar de uma nova era, que apelidámos de O Grande Salto, porque Norton de Matos, neste segundo governadorado, imprimiu uma tal dinâmica que transformou Angola de feitoria em colónia. A sua posse desencadeou uma onda de entusiástica emigração para Angola.
O capitão-mor que era a autoridade em uma região, logo que estivesse pacificada, deixou má fama em Angola, onde ficou conhecido quer pela violência de que se cercava, quer pelas extorsões que praticava. Norton de Matos, em 1921, acabou com esta predominância militar e instituiu o Quadro Administrativo Civil que perdurou até à independência.
O Quadro Administrativo Civil foi preenchido com pessoal formado na Escola Superior Colonial, sediada em Lisboa e por angolanos escolhidos por concursos públicos. Houve uma substancial melhoria nas relações humanas, pese embora alguns episódios desagradáveis.
Os maiores pecados do Quadro Administrativo foram o de ter colaborado com o negócio dos contratados, e o de ter exorbitado, algumas vezes, na autoridade. O contrato foi uma maneira hábil que o governo de Lisboa encontrou para se continuar a utilizar a mão de obra barata, uma atenuada reminiscência da escravidão. Dela beneficiava a oligarquia de Lisboa (detentora das grandes fazendas e de inúmeros privilégios e monopólios), mas o ónus recaía sobre os administrativos e sobre os colonos. Eram os administrativos que tinham que cumprir as ordens absurdas e iníquas, era sobre eles que recaíam todas as acrimónias das injustiças praticadas. Mas as mais valias económicas e financeiras deste mau proceder ficavam para os oligas. Que nunca deram a cara. Até na independência ficaram “assobiando para o lado”.
A parte pior do contrato sobrou para o Chefe do Posto. Dizia-se que alguns recebiam comissão por cada “contratado” que conseguissem arranjar para S.Tomé, para as fazendas do litoral de Angola, para as fazendas de café no sub-planalto, ou para as pescarias. Os donos da maioria das fazendas viviam em Lisboa, em um execrável absentismo mas com um total poder de decisão.
Corria por Angola a fama de que os administrativos da Baixa de Cassanje e da Lunda recebiam um segundo salário pago pelas ANG`s Cotonang e Diamang. Mas a figura principal, em todo este negócio, era o angariador de pessoal, detestado pela população, já por estar a esvaziar demograficamente a região,o que prejudicava a produção e consequente comércio no interior, já pelo tipo de transacção, já por alardear fartura de dinheiro aliás uma pecha típica dos portugueses quando ganham dinheiro fácil.
Como se pode classificar a actuação do Quadro Administrativo, sem cair em excessos de linguagem ou em maniqueísmos? Depois de 1974, em Portugal, não se procura a verdade, ou melhor, as verdades. Apenas o que é politicamente correcto e que não vá pôr em xeque “as conquistas do 25 de Abril”.Para ocultar o passado nada como manter, através de uma imprensa controlada e ignorante, as consagradas “verdades” definitivas e oficiais.
Angola começou a pulsar como nação, infelizmente governada superior e politicamente por um absentismo colonialista, a partir de 1920, no início do segundo consulado de Norton de Matos, com a instituição do Quadro Administrativo. Foram eles, os Administradores, os Secretários e os Chefes do Posto (estes designados, a partir de 1961, por Administradores de Posto), que instituiram o poder em Angola, foram eles que desarmaram a população, foram eles que incentivaram a agricultura de subsistência, foram eles que garantiram a paz em Angola, um bem que lá não existia desde tempos imemoriais, Foram eles que estabeleceram as fronteiras nacionais e entre províncias, foram eles que dirigiram a construção das primeiras estradas, foram eles que garantiram a circulação de pessoas e bens, por todo o país, foram eles que apoiaram fortemente as acções tendentes a erradicar ou atenuar as seculares doenças , foram eles que incentivaram e protegeram a agricultura tradicional, punindo extorsões ou roubos,foram eles que tornaram possível o entendimento entre povos diferentes.
Infelizmente houve injustiças e até alguns actos de brutalidade, que se repercutiriam até aos dias da independência, e que ficaram com o maior peso, porque foram aproveitados para as sementes da discórdia e separação. As poucas acções negativas do Quadro Administrativo, de muito menor volume do que as acções positivas, ficaram com muito maior peso para a posteridade. E para a história recente. Terão que passar muitas décadas até se reconhecer, também, o papel positivo dos administrativos. A actual Angola, nação consolidada una e próspera, não teria sido possível sem o braço vigoroso do Quadro Administrativo nos seus primórdios.
Em mais de meio século, porque a colonização só começou na década de 20, os colonos conseguiram implantar e transformar Angola nos seguintes pontos:
1.-População sem armas e portanto sem violência. Um latrocínio (assassinato para roubar) era severamente punido. Instalou-se um clima de paz e de trabalho, visíveis em poucos anos: a colónia passou a ter desafogo económico ou, para ser mais moderno nas palavras, adquiriu uma situação de sustentabilidade. A fome, com presença constante em séculos anteriores, passou a ser apenas uma má recordação.
2.-Erradicação das terríveis doenças que faziam de Angola uma das piores regiões do mundo. Há historiadores modernos que apoucam o incontestável sucesso da supressão das doenças mortíferas argumentando que”fizeram isso porque queriam trabalhadores sãos para as roças e fazendas”. É provável que isso tenha passado pela cabeça de algum governante alinhado com alguns africanistas de Lisboa. Mas o espírito em Angola, nos médicos, nos enfermeiros e em todas as pessoas que contribuiram para o enorme sucesso da erradicação de quase todas as doenças tropicais, e não só, nunca foi esse. O objectivo dos agentes de saúde em Angola, e eu conheci muitos e muitos, nunca foi o de “contribuir para a saúde dos trabalhadores das fazendas”. Foi unicamente o de orgulho profissional, de competência,de brio de generosidade e de honradez. Ninguém gosta de viver em uma terra cercado de doenças e miséria. Ninguém gosta de viajar “com os vidros fechados” numa terra de calor.
O quadro de saúde em Angola deixou um rasto de sucessos devido à abnegação, ao entusiasmo e altruísmo dos seus elementos. Podemos aqui citar grandes médicos, não só no sentido académico, mas especialmente no sentido humano. O Dr.João Pessoa, que morreu quase na miséria em Nova Lisboa, o Dr. Pinto da Fonseca, que mesmo canceroso, continuou a dirigir as brigadas da “Doença do Sono”, o Dr.Garcez Palha que gostava da profissão e que não tinha horários, o Dr.Ricou empenhado em erradicar a lepra,o dr.Strangway da Chissamba, os drs Parsons, pai e filho da Missão do Bongo etc. E, também, grandes enfermeiros, “verdadeiros médicos” quando não os havia nos bicanjos longínquos (interior), que chegaram a fazer milagres. Eles actuavam, porque gostavam da profissão, eram competentes e ambicionavam melhorar o terrível quadro clínico que existia em Angola. E conseguiram-no. Conheci enfermeiros que se deslocavam de bicicleta pessoal, paga do seu bolso, em percursos longos e difíceis, só para vacinarem populações isoladas.
3.-Um orçamento geral equilibrado, em que tudo era pago dentro dos prazos e não havia lugar para desvios de dinheiro e, muito menos, para falcatruas. Todos pagavam os impostos justos em tempo devido. Havia uma confiabilidade mútua nos negócios.
4.-Um sistema de produção e comercialização de alimentos, que tornaram o país auto sustentado. Os excedentes, cada vez maiores, eram exportados. Produção quase toda feita pelos africanos. Em todos os pontos de Angola encontravam-se os artigos de primeira necessidade, baratos e cujos preços não sofriam inflação: pão, peixe seco e em conserva, enlatados de peixe e carne, farinhas de bombó e milho, sal, azeite dem-dem, feijão, fósforos, petróleo, sabão, tintura de iodo, tintura de mercuro-cromo, creolina, resoquina e outros anti-palúdicos, aspirina, sulfamidas, bananas, cambriquites (cobertores), D.D.T. (chamado pó mata-piolhos) etc. E não eram provenientes de doações de países estrangeiros. Eram produzidos em Angola e adquiridos através do trabalho honrado dos angolanos.
Nenhum angolano estava à espera de receber doações.Nas transacções comerciais não havia intermediários ( comissários ou parceiros) parasitas. O sistema de produção de alimentos foi instituido por Norton de Matos, governador geral de Angola em 1912/1914. O país produzia em 1973 mais de 40 artigos comerciáveis, quase todos produzidos pelos camponeses africanos, ostentando uma balança comercial invejável ou, usando novamente os jargões de hoje, uma economia sustentável. Infelizmente o colonialismo metropolitano aproveitou-se das divisas relativas às exportações e mantinha os africanos, por regra, sob salários vergonhosamente baixos.
Durante a guerra de 1939-1945 houve casos escandalosos de apropriação das divisas de Angola feitas pelos colonialistas da Metrópole. Estes chegavam a ter lucros escandalosos até nos próprios transportes marítimos monopolisados! As tarifas nos barcos belgas, franceses e ingleses eram mais baratas do que nos transportes portugueses. Mas era obrigatória a utilização destes últimos!
A agricultura em Angola era difícil devida a vários factores: solos pobres, facilmente erosionáveis, pragas violentas especialmente quando se agricultavam grandes áreas contínuas, transportes deficientes, escasso poder de compra por ausência de moeda-uma manobra cavilosa dos governos de Lisboa- , ausência de crédito agrícola, doenças no pouco gado de tracção, etc.
Os solos eram pouco férteis, mas qual a explicação para o facto de a produção nativa encher todos os silos, ao longo das ferrovias e também ao longo das estradas ? A resposta tem várias componentes. Era essencialmente, uma agricultura de subsistência, tradicional, sustentável, itinerante, apoiada pelos orgâos oficiais, financiada pelos comerciantes ( com todos os atropelos que lhes são, a maioria das vezes sem razão, imputados), supervisionada pelas autoridades. Fazia-se dentro de uma economia fora de todos os parâmetros ocidentais ( capital, juros, taxa de retorno, amortizações etc. ), era uma agricultura livre ( uma das poucas liberdades que os camponeses angolanos usufruiram). O sucesso da produção nativa apoiava-se em cinco cês: camponeses, comerciantes, chefes do posto, camionistas e capatazes agrícolas dos serviços oficiais.
Era uma agricultura de subsistência porque garantia aos camponeses as condições mínimas de alimentação e aquisição de bens primários. As fubas de mandioca e milho, o feijão, a batata doce, o arroz, juntamente com peixe seco do litoral ( muito barato) ou alguma carne que compravam ,ou obtinham da caça, complementados com azeite de palma, eram a base da alimentaçã. O excedente era trocado por comida (o pão era vulgar) roupa e outros artigos, nas lojas dos comerciantes do mato ou na cidade, se estivessem próximas. As sementes eram distribuídas pelos orgãos oficiais, Junta dos Cereais ou Serviços de Agricultura e Florestas que também ofereciam ajuda técnica. Eram os únicos subsídios do Estado, mas não eram em dinheiro. Nada de subsídios!
As sementes recebiam um corante, que os orgãos que as distribuíam diziam ser venenoso, a fim de evitar que fossem utilizadas na alimentação. Os serviços oficiais faziam qualquer desinfecção, se fossse necessário, e combatiam as pragas muito frequentes. Muitas vezes os comerciantes vendiam sementes, às vezes ofereciam-nas, e comprometiam-se a comprar as produções, foi assim que se difundiram, rapidamente, culturas de outros géneros. Géneros exóticos como por exemplo os morangos (aos milhares) grão de bico, produtos hortícolas, até espargos, frutas de clima temperado, etc.

Fig1 - Silos de milho na Caála. Esta cidade de invulgar vigor económico, apesar de não ser capital de distrito e situar-se muito próximo de Nova Lisboa (Huambo), era conhecida pelo epíteto de “Rainha do milho”.Um engenheiro húngaro, que conheci no Brasil, e que tinha trabalhado em Angola logo após a independência, perguntou-me, espantado, se os silos que bordejavam as estações do Caminho de Ferro de Benguela eram só para propaganda ( influência do regime comunista que vigorou na Hungria e que ele abominava do mais fundo da sua alma! ), ou se realmente ficavam repletos. Eu confirmei: ficavam repletos e nos lados restavam milhares de sacos, por excesso de produção. Era necessário construirem-se mais silos. Então, por que é que os europeus não tinham sucesso com a agricultura ? O húngaro baseava-se nos, já evidentes, insucessos dos cooperantes estrangeiros ao pretenderem implantar uma agricultura soviética. Estes cooperantes agrícolas estavam convencidos de que os solos negros de Angola eram “ Tchernozions”. Estes solos, que existem na Ucrânia, são os mais ricos do mundo.Os africanos tinham sucesso porque acumulavam séculos de experiência, uma sabedoria empírica que funcionava.

Como escreveu Isabel Castro (115) «... comerciantes, esses intermediários que dão valor ao que se produz, qualquer que seja a natureza dos bens propostos».
A propósito, o insuspeito geógrafo santomense, já falecido, Francisco Tenreiro, em 1962 escreveu, citado por Orlando Ribeiro(182) «Certamente como colono lançado pelo interior das savanas e anharas o português trouxe, como portador de civilização em expansão, muita perturbação às estruturas tradicionais nativas, o que sempre se dá quando lado a lado estão culturas diferentes, mas também transplantou elementos que revigoraram as mesma estruturas no campo da vida material ou económica, sistemas e princípios revolucionários àquelas latitudes. O tudo traduziu-se num enriquecimento do património agrário pela introdução de plantas que, se indiscutivelmente não erradicaram por completo a fome congénita daquelas civilizações, a atenuaram consideravelmente: lembro-me do milho americano, da mandioca, da jinguba e tantos outros produtos presentes, hoje, por toda a parte, na dieta fundamental dos africanos negros; instrumentos agrários, nem sempre utilizados com sabedoria, mas que promovem, quando aplicados devidamente, uma melhoria dos rendimentos da terra, como o uso da charrua ou até simplesmente da enxada e pás de cabo comprido; estimulou a utilização dos estrumes transformando uma agricultura ausente de gado em sistemas agrários mistos, etc. A outro nível, levou uma religião ecuménica- o cristianismo-, um sentido de unidade política e uma língua veicular- e se todos estes elementos não se encontram ainda hoje profundamente radicados nas estruturas nativas, permitem, no entanto, num mundo diverso física e humanamente, um certo caminhar em comum, um certo sentido colectivo, acentuado ainda por um ensino rudimentar e por uma salubridade que começa a dar os seus frutos. Acrescente-se a isto uma forma de viver que tende para a harmonia entre os homens que, embora de quando em quando submetida a desvios perigosos, não deixou de constituir até hoje um revelação original. Em síntese: o corpo de Angola existe porque existem portugueses- pretos e brancos».
Era uma agricultura itinerante e tradicional porque, como já se apontou, os solos eram pouco férteis e frágeis. Mais de três anos de culturas tornavam o solo infértil e obrigavam a ir cultivar outras áreas virgens ou áreas com muitos anos de pousio. Isso explica a grande transitoriedade dos povoados nativos, um dos motivos por que as suas casas não eram de construção definitiva, que utiliza pedra, tijolo e outros materiais mais duráveis. Por isso a grande complexidade da questão fundiária em Angola, em que os terrenos pareciam que não eram de ninguém, mas que eram reclamados quando alguém os pretendia utilizar. Uma agricultura itinerante precisa de todas as terras, nunca se sabe onde se vai abrir “ uma lavra”.
Os africanos sabiam, por experiência secular, quando uma terra já podia receber culturas. Um outro motivo desta agricultura itinerante era o de não se poderem estrumar as terras, aumentando-lhes a fertilidade, devido à falta de transportes com gado cavalar, asinino e bovino.
Mesmo quando tinham gado bovino, que sobrevivia às doenças, não se aproveitavam os estrumes porque os bois não eram estabulados de acordo com as práticas agrícolas sequentes. E não havia tradição no manejo de gado de tracção, embora já muitos camponeses lidassem, e bem, com esta melhoria.
A economia da agricultura itinerante sai fora da percepção capitalista, e muito especialmente, da desastrada economia dirigida que vigorou no império soviético e que foi implantada em Angola nos primórdios da independência. O capitalismo arroga-se o direito de entender que, fora do âmbito da competição e do lucro, ninguém pode sobreviver. Esta economia africana não visava o lucro e muito menos tinha contabilidade, era um trabalho de formiguinhas laboriosas, que enchiam os silos grão a grão, pouco se importando com o rendimento por hectare, com o capital investido ( era só o trabalho manual), com a taxa de retorno, com a amortização e com toda uma parafernália de termos que conduzem, regra geral, a uma febre de subsídios e concomitante falência, que depois o estado subsidia, ou melhor, distribui dinheiro sem controle. Eu gostaria de ver um agricultor europeu, que vive apoiado no estado, a produzir cereais em Angola, sem subsídios directos (dinheiro), como faziam os angolanos.
E sobretudo era uma agricultura sustentada. Os camponeses africanos, ao contrário do que se pensava e escrevia durante os primeiros tempos da presença europeia, tinham tecnologia, experiência, bom senso e sensibilidade para os problemas agrícolas, como foi observado por Livingstone, Cameron, Serpa Pinto, Capelo, Ivens, Artur de Paiva, Henrique de Carvalho, Paiva Couceiro e, especialmente, Norton de Matos, nos fins do século 19 e princípios do século 20. E por muitos agrónomos, nos tempos seguintes, quando adquiriam experiência local.
Raramente eu vi um insucesso entre estes camponeses. Discretos, como formiguinhas, não exigiam subsídios, não contraíam empréstimos, não exigiam indemnizações quando a natureza era adversa, não faziam manifestações, não culpavam o estado pelos insucessos, mas enchiam os silos e aumentavam as produções de ano para ano. E ainda alguns africanistas comentavam que “eles não gostam de trabalhar”. Em produção de alimentos Angola ocupava um lugar de destaque em África. Produzia para comer e exportava os excedentes. Nos finais dos anos 60, antes do grande desenvolvimento que caracterizou o Tempo Extra (1961- 1974) a colónia produziu, para exportação, 87 217 toneladas de café robusta ( 15% da produção africana), 58 571 toneladas de sisal, 117 116 toneladas de milho, 13 004 toneladas de óleo de palma, 11 789 toneladas de feijão, 3 846 toneladas de arroz além de bananas, laranjas, abacaxi, batata, mandioca, batata doce e outros géneros, muitos e muito géneros, alguns bem exóticos. Em anexo( no livro) apresentam-se números de produção, em cotejo com a África tropical.São números que confirmam o que escrevemos.
Bastava apenas um comerciante do mato fornecer as sementes, e comprometer-se na compra, e os resultados apareciam. Os comerciantes do mato davam valor a tudo o que se produzisse. Compravam todos os géneros, alguns com pouco interesse. O Bié, por exemplo, era farto de morangos, fruta pinha, nêsperas, goiabas, mangas,bananas, citrinos e produtos hortícolas introduzidos pelos comerciantes do mato. Quando as estradas já estavam asfaltadas os camponeses vendiam frutas e produtos hortícolas ao longo das estradas, um interessante comércio que estava tendo um crescimento exponencial e que iria originar a instituição de futuras feiras tradicionais e, até, ao aparecimento de novas cidades.
Em Fevereiro de 1953 em conferência no Palácio da Bolsa no Porto Marcelo Caetano, um dos ideólogos das doutrinas coloniais e colonialistas, desenvolveu o tema “O nativo como produtor”. A respeito eis o que disseram os jornais:
“Enumerou os principais géneros cultivados uns para consumo, outros para exportação, e deteve-se no estudo das características da agricultura angolana feita em pequenas lavras dispersas, que mudam de ano para ano de lugar (cultura divagante) com muita técnica primitiva, quase sem alfaias, trabalhada sobretudo pelas mulheres emquanto os homens permanecem ociosos. Não admira, pois, que a agricultura africana produza relativamente pouco e de má qualidade.
Mas se o ruralato indígena prende muitos braços para atingir um resultado medíocre, não será preferível aproveitar antes os pretos como assalariados das empresas europeias ? O problema é muito complexo e não pode apenas atender-se ao seu aspecto económico. Mas, sem dúvida, uma parte da população indígena tem de participar na produção, fornecendo trabalhadores de conta doutrem, enquadrados por europeus.”
Antes de mais, uma observação ao termo divagante que caracteriza um acto sem rumo certo ou sem objectivos, mais ao sabor do acaso. Não era assim a agricultura tradicional dos africanos. Já mencionámos que era uma agricultura itinerante, que seguia um planeamento baseado na experiência. Os solos, especialmente os do planalto central, perdiam a sua pouca fertilidade ao fim de 3 ou 4 colheitas e havia necessidade de os deixar em pousio. Escolhiam-se outros locais e a faina agrícola lá prosseguia. Os rendimentos, segundo a óptica capitalista não eram bons, mas era com eles que Angola exportava milho e muitos outros géneros. Foi com a tal “divagante e com muita técnica primitiva” e “relativamente pouco e de má qualidade” que Portugal se alimentou de milho, feijão e açucar, principalmente, durante a segunda guerra mundial. Interessante a maneira capciosa como se defende o contrato: « Mas, sem dúvida, uma parte da população indígena tem de participar na produção, fornecendo trabalhadores de conta doutrem, enquadrados por europeus.»

Fig 2- Nos últimos anos da monarquia e durante os 16 anos da 1ª República os governos de Lisboa olharam Angola sob uma optica de melhoria das condições de vida dos africanos. Floresceram em Luanda, Benguela, Golungo-Alto, Ambaca, Pungo Andongo e Caconda burguesias africanas ocidentalizadas e alfabetizadas, um contraste com a Metrópole.Isto já tinha provocado o espanto, em 1854, de David Livingstone, quando passou por Angola. Um dos angolanos de referência foi Luiz Sambo autodidata e sempre empenhado em obras de ajuda e cooperação com os angolanos. Na figura uma escola por ele dirigida e patrocinada pelo rei D.Carlos.

É bom frisar que a maioria dos colonos não tinha fazendas mas apenas “chitacas”. Uma loja era sempre necessária para suporte financeiro das chitacas que, normalmente, davam prejuízos.Eram muitas e desconhecidas as doenças que atacavam, especialmente, as espécies exóticas.
Os chefes do posto garantiam a segurança, reprimindo os roubos ou extorsões. Se não fosse a sua autoridade, infelizmente com alguns excessos, nunca teria sido possível instituir uma agricultura tão sustentável.
O sistema da produção de géneros alimentícios, já consolidado e em vias de sofrer uma segunda transformação com a introdução de pequena mecanização e tecnologias intermédias, recebeu em 1977, já com Angola independente, uma primeira cacetada com uma infeliz frase de Agostinho Neto:
«O camponês tem, em si, um gérmen de capitalista. O sonho de um camponês qual é? É ter uma grande propriedade ... para ter lucros. E o seu lucro aumenta à custa dos trabalhadores que ele assalariou. É um explorador». Discurso de Agostinho Neto em 1977, citado em “A indústria.em tempo de guerra (Angola 1975-91)” de Manuel Ennes Ferreira.
5.-Havia uma pacífica convivência entre os diversas povos que constituem a nação angolana. Comparável à que existia na antiga Jugoslávia, no tempo do marechal Tito. Se não fossem as barreiras impostas, subreptíciamente, por Lisboa, a convivência teria sido melhor, entre a comunidade europeia e a africana. Se deixassem trabalhar a natureza (miscigenação e aculturação), o resultado teria sido menos desastroso.
6.-Um sistema de ensino adaptado ao país. Vale repetir que este sistema, infelizmente, só foi adoptado no Tempo Extra, ou seja a partir de 1961. Os professores recebiam, dentro dos prazos, o respectivo salário. Era impressionante verificar-se a avidez dos africanos pelo ensino e cultura. Era raro um africano abandonar os estudos.
7.-Uma rede de estradas invejável, até em países do primeiro mundo. Voltamos a repetir que, infelizmente, só apareceu no Tempo Extra(1961-1974), mas isso não lhe tira o mérito. Todas as cidades estavam ligadas por estradas asfaltadas. Em 1973 Angola dispunha de mais de 8000 km de estradas pavimentadas. Vale ressaltar aqui a excelência da JAEA (Junta Autónoma de Estradas de Angola).


Fig 3 - Os lacetes da Leba. Um “ataque” à Escarpa Atlântica” no sul de Angola. Como já frisámos, em ensaios anteriores, o sistema orográfico do país é concordante com a linha litoral e atinge os 2000 m a escassos 200 km do mar. Por tal motivo Angola era quase inexpugnável. Esta estrada é um exemplo geográfico da tenacidade dos colonos e da excelência da engenharia angolana. Esta subida,infelizmente só concretizada nos anos 60, foi sempre uma velha aspiração dos colonos.

OS OSSOS DA COLONIZAÇÃO (2)

Fig 4 Uma vista geral da subida da Leba: é notória a grandiosidade da estrada e da paisagem..

8.-Os recursos naturais estavam bem preservados, em muitos aspectos até demais. Nos diamantes exagerou-se em não querer mexer, mas isto é outra conversa abordada em ensaios anteriores. Por exemplo no aspecto florestal Angola estava bem encaminhada, tudo estava regulamentado, não havia lugar para depredações, como sucede actual e infelizmente. Era um a estabilização do deserto no sudoeste do país. A conservação do solo era uma realidade, era uma preocupação quotidiana dos respectivos orgãos oficiais.
9.- Parques naturais-A colonização portuguesa protegeu 64 650 km2 de parques nacionais, 93 450 km2 de reservas naturais e 18 050 km2 de reservas florestais. Estes parques, reservas naturais e florestais estavam perfeitamente definidos e eficientemente policiados. Todas as cidades eram rodeadas de perímetros florestais destinados a cortar ventos e secar pântanos, além de proporcionarem remanejamento de massa seca para lenhas.
O maior consumo energético era feito pelos africanos através da lenha. Isto iria acarretar, à medida que as cidades crescessem, uma rarefação do combustível doméstico dos africanos. Planeava-se o fabrico em Angola de fogões “Primus” e candeiros tipo “Petromax” para evitar o desbaste da flora natural.
Contavam-se por milhares as palancas pretas (únicos exemplares no Mundo) no Parque do Luando. Havia grandes mamíferos (elefantes, rinos, hipopótamos e pacaças (búfalos) a 50 km de Luanda. Os rios de Angola estavam povoados de crocodilos e hipopótamos.
10.-Uma frota pesqueira, constituida por milhares de pequenos pescadores, que contribuía para a preponderância de Angola nas exportações de pescado. A industria de enlatados de peixe era uma bela realidade. Como já era realidade o peixe congelado. A farinha de peixe era um dos maiores produtos de exportação. O peixe seco e o de meia-cura foram um notável contributo para a alimentação dos angolanos. Além das proteínas, o peixe do mar (ombisse) reduziu o bócio para níveis insignificantes, devido à presença de iodo. Infelizmente nesta área poderia ter-se feito mais se tivesse havido crédito bonificado. Lisboa nunca quis que em Angola se instalasse uma postura atlântica, virada para o mar, é sintomático que, no século 20, só tenha surgido uma única cidade litorânea o Lobito. Portugal, um pioneiro na navegação de longo curso, e depositário de uma cultura marítima mundial, não deixou qualquer escola de ciência dos mares em Angola. Nem sequer uma mentalidade atlântica.A pesca desenvolveu-se por particulares.A orla marítima esteve, sempre, abandonada pelos governantes de Lisboa.
Fig 5 Lobito o melhor porto da África Ocidental em 1973. Era o pivot de toda a importação e exportação de mais de metade de Angola e das regiões, na altura integradas em colónias da Bélgica e Inglaterra, Katanga e Rodésia do Sul. A cidade fundada em 1903 destinou-se a ser o términus do Caminho de Ferro de Benguela. É uma língua de areia (restinga) originada pelos sedimentos dos rios Catumbela e Cavaco, pelas calemas e pela Corrente Fria de Benguela. Era motivo de comentários irónicos, entre os angolanos, devido ao seu elevado requinte civilizacional .Lobito era a porta de entrada da modernidade.Nota-se o eficiente sistema de ampliação da restinga empreendida pelo LNEC de Lisboa nos anos 70, com colaboração do LEA de Angola que os brasileiros denominavam de LNEQUINHO, por ser também excelente nos trabalhos que fazia.

Fig 6 A vermelho o percurso do Caminho de Ferro de Benguela com 1349 km desde o Lobito até à fronteira leste em Teixeira de Sousa(actual Léua).Nesta vila ligava-se com a Rodésia do Norte (actual Zâmbia) e com o Katanga (actual Shaba pertencente à República Popular do Congo). E, depois, com todo o sul de África, incluindo Moçambique e África do Sul.. O traçado implantou-se na Culminação Transversal de Angola uma linha de cumeada que separa os rios do norte dos do sul, excepto o rio Cuanza como já foi descrito em um nosso anterior ensaio.

Fig 7 Oficinas Gerais do Caminho de Ferro de Benguela em Nova Lisboa (actual Huambo). A ferrovia drenava minérios do Katanga e da Zâmbia. Os comboios com minérios, nocturnos, sucediam-se uns aos outros, num afã de acordo com o lema colonial “o tempo urge”. Como qualquer peça das máquinas a vapor demorava muito tempo até chegar a Angola, logo nos primórdios (1910) a administração inglesa instalou as Oficinas Gerais, uma verdadeira fábrica. Nos anos 60, quando os comboios a vapor começavam a desaparecer estas Oficinas fabricavam peças de material circulante para todo o mundo. Embora a mentalidade do CFB até 1961 fosse anglo-saxónica com separação etnica, é justo destacar a primorosa administração desta companhia, onde tudo funcionava e onde tudo era cumprido, rigorosamente.Neste ultimo aspecto um grande exemplo,até para os tempos presentes.Os lucros desta empresa eram normais porque predominava já, naquela altura, o tripé- lucro, social e ambiental.

11 -Um cadastro de terras organizado e uma cartografia excelente. A carta aerofotogramétrica, na escala 1/100 000 e constituída por 484 folhas, era um dos bons instrumentos para o desenvolvimento do país. Em geodesia Angola estava toda triangulada. Estava montado um cadastro que, facilmente, ajudaria a uma distribuição de terras pelos camponeses. A propósito, repetimos, quando é que os angolanos terão direitos a serem donos “jure et facto” (de direito e de facto) das suas terras?
12.-Ética nas actividades comerciais e no dia a dia das populações. Quase toda a gente, apesar dos salários serem baixos, saldava os seus débitos. A taxa de letras protestadas era menor do que 5%.
13.-Meteorologia eficiente, cobrindo todo o país, com dados completos de 20 anos, ou mais (até 1973) , em todas as capitais de distrito. Se as observações não tivessem sido abandonadas hoje Angola disporia de dados meteorológicos fiáveis, com mais de 30 anos, uma ferramenta imprescíndivel em hidrologia. Com dados de 30 anos é possível obterem-se equações de chuvas, por exemplo. Mas, ainda hoje, os dados daquele tempo, absolutamente confiáveis, são de uma evidente utilidade. A partir de 1961 foi estabelecida uma rede de hidrometria; em 1974 já se dispunha de valiosos dados sobre os caudais dos rios.
14.- Laços familiares. Apesar das actuações menos felizes (os famigerados contratos) que caracterizaram o colonialismo, ainda se mantinham as bases e raízes africanas. O “quimbo” era o último refugio de um sèculo (ancião), era a sua “segurança social”.

Fig 8 – Ocupação portuguesa (em róseo) em Angola em 1905, segundo René Pélissier (História das Campanhas de Angola-Imprensa Universitária, Editorial Estampa Lisboa 1986).Só havia 2 cidades (Luanda e Benguela). Moçâmedes foi promovida a cidade em 1907, Lubango em 1923 , Malange em 1933 e Belmonte (Silva Porto, actual Cuito) em 1935. Luanda foi fundada em 1575 e Benguela em 1617.

15.-Farmácias eficientes e sérias. Os medicamentos fornecidos pelo estado eram gratuitos, genéricos e absolutamente confiáveis. Como confiáveis eram a alimentação e a água, em qualquer parte de Angola. Luanda tinha a melhor água dentre as cidades da África ocidental. A água em garrafas não fazia parte do quotidiano luandense, bebia-se, com confiança, água da torneira. Que o povo chamava de “UísqueDucano”.
16.-Parques industriais interessantes e numa explosiva expansão.Angola fabricava quase todos os artigos que eram consumidos pela sua população, como por exemplo tijolos, telhas, cobertores (cambriquites), tecidos, sapatos, pneus, fósforos, óleos comestíveis, farinhas, tubos, bicicletas etc. Nos últimos anos a taxa de crescimento industrial chegou a atingir 22% ao ano. Eram indústrias, mesmo, e não artigos industriais vindos em contentores, às vezes de países distantes, onde se pratica ainda uma semi-escravatura apoiada em degredados. Em 1944 a Lupral em Benguela já fabricava tubos para saneamento, chapas de aço, e diversos artigos de serralharia (pregos, parafusos, fechaduras etc.). Eram indústrias dirigidas por engenheiros que se preocupavam com a produção.

OS OSSOS DA COLONIZAÇÃO (3)

17.-Aglomerados populacionais com boa qualidade de vida. De três cidades e meia dúzia de vilas em 1920 Angola tinha em 1974 mais de 30 cidades, centenas de vilas e milhares de povoações. Todos os anos duas vilas eram promovidas a cidades. Hoje haveria, pelo menos, mais 60 novas cidades. Uma cidade tinha que obedecer aos seguintes requisitos: ter, pelo menos dois bons hoteis, água tratada e electricidade, colégio do ensino liceal ou técnico, hospital, ruas pavimentadas, repartição de finanças e foral.
Angola tinha uma interessante cobertura de hoteis e pensões de cariz europeu. Um engenheiro inglês, que conheci em 1974, afirmou-me que ficou surpreendido com os restaurantes e pastelarias existentes em Angola, não só pela qualidade como pelos preços praticados.


Fig 9 Os transportes foram um dos principais factores limitantes ao progresso de Angola. Paiva Couceiro(1907-1909), o governador mais esclarecido que passou em Angola, empreendeu esforços denodados para melhorá-los. Em 1908 tentou a locomóvel, um tractor a vapor puxando 2 vagões. Isto funcionou, muito precariamente, entre Lucala (onde já chegava a ferrovia) e Malanje. Durou pouco tempo porque o automóvel já se estava impondo no mundo. Apesar disso as locomóveis foram muito uteis porque foram aproveitaas para geração de energia electrica quando ligadas a um gerador. O combustível era a lenha, seria hoje uma energia de biomassa..


Fig 10 Abertura de uma estrada em 1908. O automóvel já se estava espalhando por todo o mundo. Em breve Angola começaria a ser inundada com o célebre automóvel Ford T. A Escarpa Atlântica foi um sério obstáculo à subida para os planaltos.

Havia toda uma herança colonial utilizável e que foi liminarmente destruída, em nome de uma ideologia marxista que só durou 15 anos. Se em Portugal tivesse prevalecido a teoria da “destruição criadora”!!!, logo após o 25 de Abril, o país teria hoje, apenas, meia dúzia de barragens, ao invés de mais de uma centena. Porque na construção das barragens em Portugal também se verificou exploração de mão de obra e houve extorsões de terras sem a devida compensação. A maior parte das barragens foi construida no regime salazarista. Em todas elas ainda lá estão as placas comemorativas da inauguração.
Quem inventou a teoria da ”destruição criadora”, implantada em Angola, de certeza que nunca pegou numa parker(passe a propaganda) de 9 libras. Angola não se fez de um dia para o outro. Como foi explanado, ao longo destas mucandas, a vida em Angola em 1974 era dura, mas muito agradável se a compararmos com o início de século 20 em que ainda não havia estradas e as doenças eram uma constante no dia a dia. A Angola de 1974 era o culminar de um esforço gigantesco de milhões de pessoas, europeus e africanos. Era todo um passado aproveitável.
Vale a pena referir aqui o exemplo da Alemanha. A prestigiada marca Volkswagen nasceu sob a inspiração de Hitler. Este ditador resolveu que todos os alemães iriam desfrutar da utilidade e do prazer de possuir um automóvel. Projectou-se um carro popular que atendia aos desejos de Hitler. Dizia-se que ele tinha dado muitas sugestões. Era o célebre carochinha ou fusquinha no Brasil, um dos carros mais populares na história do automóvel. Com um motor original arrefecido com turbina de ar. O primeiro carro apareceu em 1936 e logo começaram a sair aos milhares. A partir de 1938 apareceu um outro modelo, com um desenho menos aerodinâmico mas mais robusto. Era uma espécie de jipe que foi utilizado na guerra que eclodiu pouco depois em 1939. Assinale-se, como curiosidade, que o motor arrefecido a ar estava adaptado à guerra no deserto. Uma novidade premonitória.
Depois da Guerra Mundial (1939/1945), em que a Alemanha ficou quase toda destruída, a fábrica Volkswagem voltou a laborar em poucos anos. Em 1953 já em Angola rodavam os primeiros carros Volkswagen perante a estupefacção das pessoas. Estupefacção dupla, não só pelo pequeno e estranho automóvel diferente dos carrões americanos Ford e Chevrolet, glutões em consumo, como também pela recuperação da Alemanha. Esta em 8 anos, depois de uma tremenda guerra destruidora, já apresentava carros robustos, económicos e baratos.
Os automóveis Mercedes, ainda com as linhas características do tempo da guerra, começaram, também, a aparecer no pequeno mercado angolano em 1947. Em pequeníssima quantidade, diferente do que hoje se verifica. Os alemães, depois de uma guerra destruidora, aproveitando as tecnologias e os recursos humanos que “sobraram” da carnificina anterior, logo recomeçaram as suas vidas. Mas aproveitaram o que de bom existia no medonho regime anterior.
O mesmo se passou com os japoneses. A fábrica imperial Mitsubishi, que fabricou aviões para a máquina de guerra japonesa, de imediato recomeçou a sua actividade, agora dirigida ao bem estar dos japoneses e aos tempos de paz.
Mal iriam estes países se não aproveitassem os aspectos positivos dos dois sistemas totalitários que existiram durante a década de 30 e metade da década de 40. Não se destroe o que várias gerações demoraram a fazer, não interessa qual o regime que vigorou. O que é bom tem que ser aproveitado, não interessa quem o mandou fazer. Como disse Deng Xiao Ping “não interessa a côr do gato, interessa é que cace ratos”.
A Espanha passou por uma terrível guerra civil de 1936 a 1939, em que morreram milhões de cidadãos.. Grande parte das cidades espanholas ficou arrasada mas a reconstrução foi iniciada no dia seguinte ao fim das hostilidades. A Espanha estava pobre, com deficite de população e não tinha qualquer suporte económico. Mas não recebeu ajuda externa de qualquer espécie. Em Espanha era notória a vergonha deles quando os estrangeiros deparavam com quaisquer ruínas da guerra. Respeitando os mortos, dir-se-ia que a guerra foi um catalisador de desenvolvimento. Mas foram os espanhois que reconstruiram o país. Não ficaram à espera de chineses ou outros quejandos. Nem ficaram à espera de doações. O mesmo se passou com a Coreia do Sul envolvida em uma guerra civil em 1950, hoje uma potência industrial.
Em 1900 as fronteiras de Angola não estavam definidas o país era um puzzle de micro nações, as mais díspares, com línguas diferentes provenientes de nove grandes grupos linguísticos: Bacongos, Ambundos ou Umbundos, Lundas-Quiocos, Ovimbundos, Ganguelas, Hereros, Nhanecas-Humbes, Ovambos e Xindongas.
Não acreditamos que se formaria a actual Angola se não tivesse prevalecido a presença portuguesa. Boa ou má, conforme cada um queira interpretar segundo o seu ponto de vista, a realidade foi que o nascimento da actual nação fez-se sob a égide portuguesa. E com a colaboração de milhares de portugueses. Em 1890 apenas existiam duas cidades, ambas de raiz portuguesa: Luanda e Benguela.. No interior não existia nenhuma cidade, existiam uma vila (Dondo) e um posto administrativo (Malanje). O distrito do Bié em 1900 não tinha nenhuma vila ou cidade moderna. Mas em 1970 o Bié já tinha 3 cidades e 5 vilas em vias de serem promovidas a cidades, além de mais de 200 povoações comerciais, embriões de futuras cidades.
18.-Em Angola repetiu-se o modo português: um território imenso mas que ficou unido, como um único país. E onde vai prevalecer uma única língua. Tony Hodjes(117) observou que« O português beneficiou do seu estatuto de única língua oficial e da promoção que dele fez o Governo pós-independência como um instrumento de unidade nacional. Tem sido o único veículo de instrução nas escolas e também a língua dos militares, partilhada por sucessivas gerações de recrutas. Actualmente, é comum encontrar jovens angolanos, sobretudo em Luanda, que não falam nenhuma língua africana – uma situação sem paralelo na África Subsariana».
São comuns as lamentações de alguns angolanos: “se tivéssemos sido colonizados pelos ingleses” ou “se os holandeses tivesssem continuado em Angola”ou “se nós falássemos inglês” tudo frases que nada adiantam. Os portugueses em Angola(1),ao contrário do que se proclama, encontraram um território cheio de adversidades, na orla marítima, de clima, na orografia, de doenças (talvez das regiões mais mortíferas do mundo), de solos e de obstruções metropolitanas. Mas estas dificuldades foram todas ultrapassadas. Nasceu um país moderno que não envergonhará, nunca, os colonos. Para provar isto, basta consultar os anexos, no fim deste livro.Os colonos portugueses, ao partirem para um indesejado exílio, deixaram para trás um país , devidamente estruturado e com doses grandes de optimismo em relação ao futuro.
Em Belmonte, anterior nome de Silva Porto em 1900, residiam dez europeus,(oito solteiros e um casal). Os povoados africanos, não lhes tirando o indiscutível valor humano e social, não tinham um cariz fixo.Os motivos disto já os explanámos nos capítulos anteriores: agricultura itinerante, devido ao rápido esgotamento do solo, constante temor das razias, feitas pelos escravistas e por povos aguerridos e salteadores, epidemias de varíola, morte de um rei, etc. Os povoados africanos não se coadunavam com a modernidade, não querendo, com isto,tirar-lhes o mérito que, indiscutivelmente, detêm. A transitoriedade dos povoados já foi aqui explicada em pormenor.
Era inevitável o choque da civilização africana com a modernidade. Se não fossem os portugueses, outros apareceriam, como sucede hoje com cidadãos estrangeiros que estão em Angola, agora sob a capa não mais de governos, mas de multinacionais. Os efeitos desta “nova invasão” serão conhecidos daqui a umas décadas.
As cidades em Angola foram feitas pelos europeus e para os europeizados. Dizia-se que os africanos eram avessos às casas de materiais duráveis. Houve muitos casos de total inadaptação. Mencionámos neste livro os motivos por que os camponeses africanos mudavam, regularmente, de casa. Era um tipo de civilização nómada. Conseguiria resistir à eclosão urbana ? Seguramente que não, basta verificar o aumento exponencial das cidades em toda a África. Em menos de 30 anos a África passou de 20% de população urbana para 70%. Em Angola o interior, que já tinha um densidade demográfica muito baixa, está vazio de população. Em 30 anos Angola deixou de ser rural para se tornar urbana, mas sem posssuir estruturas para isso. E as que havia, especialmente no interior, foram destruídas. As cidades do litoral, Luanda e Benguela, ficaram hiper saturadas, no limite de colapso urbano.O mesmo se passa no interior com algumas cidades.
Vamos usar o Bié como exemplo, porque seria cansativo citarmos todo o país. O Bié, situado na região central, tem 71 870 km² (Bélgica e Holanda totalizam 71 363 km²) de área, com uma população de 1 280 000 habitantes, com taxa demográfica de 17,8 hab/km². A província tem o feitio de um coração. . Dali sai o “sangue” do país: os grandes rios que levam vida para todas as direcções. O Bié é um nó hidrográfico.Infelizmente os rios estão a ser esventrados no garimpo descontrolado de diamantes. Eles estão a ser destruidos, sistematicamente, por milhares de garimpeiros e de exploradores de diamantes. Perante a passividade, incapacidade e, em alguns casos, com a cumplicidade de alguns governantes.
Em 1973 o Bié possuia 3 cidades Silva Porto (actual Cuito), Andulo e General Machado (Camacupa), 4 vilas Chinguar, Nova Sintra (Catabola), Chitembo e Nhareia, 25 postos administrativos e 199 povoações comerciais. Os postos administrativos eram: Belo Horizonte, Cachingues, Calucinga, Cambândua, Cangote, Cassumba, Chipeta, Chinhama, Chiuca, Cuanza, Cuemba, Cutato,Gamba, Luando, Lúbia, Malengue, Mumbué, Munhango,Mutumbo, Ringoma, Sande, Silva Porto Gare, Soma Cuanza, Trumba e Umpulo.Alguns deles já candidatos a cidades.
Aqui vai a lista das povoações comerciais, com o objectivo de “ficar para a história” e, especialmente, como recordação e homenagem aos seus ex-habitantes, e para aqueles que já perderam as esperanças de poderem voltar a ver aquelas terras: Alanda, Bando, Bingendo, Bingondo,Binuco, Bolúndua, Buanga, Buende, Bunja, Caar, Cachipa, Caiei, Caingula, Caioco, Caipupa, Caiuere, Calala, Calende, Caluímbe, Calumbe, Camamba, Camarinho, Cambanda, Cambonga, Cambuta, Camera, Camué, Camunda, Candimba, Candonga, Cangala, Cangengo, Cangorangolo, Caninguiri, Capanda, Capaua, Capeça, Capeio, Capera, Capolo, Capusso, Caria, Cariongo, Cassaculo, Cassumba, Cateia, Catenga, Catota, Catundo, Caueli, Cauende, Cavambi, Cavissanda, Cavita, Cavôco,Chicala, Chicanda, Chicava, Chiculungo, Chicumbe, Chicundo, Chilau, Chilengue, Chilesso, Chilonda, Chimane, Chimbalanca, Chimbamba, Chimbe, Chimbuio, Chindemba, Chimuco, Chindumba, Chingungo, Chinquala, Chintiango, Chiombo, Chissamba, Chissira, Chissito, Chissuata, Chitane, Chitau, Chiteque, Chiti, Chiuca, Chiuco, Chivaúlo, Chivinde, Chorinde, Cohungo, Conjo, Cossulo,Cuíva, Cunje, Cupache, Cuquema, Curi, Dandau, Dando, Deca, Dondeiro, Dumba, Ecovongo, Enhuangula, Gandavira, Gando, Gango, Gimbassilile, Golungo, Hamba, Honda, Hosse, Ielele, Imbocolo, Jamba, Langala, Liezuca, Liuema, Lonundo, Lumbungulo,Lutamo, Luvalo, Malengue, Matechalo, Meticha, Mingungo, Mitecha, Moacandala, Motechiundi, Mozele, Muandoge, Muanjimbo, Muculocoto, Mucungo, Mucunha, Mundengo, Mundijinho, Mungo, Munzeia, Muondo, Mupas, Mussive, Mutota, Nambua, Nbongo, Nedejiva, Nhama, Nhongo, Nhungo, Palanca, Poto, Quibande, Quisseia, Rissosse, S.João das Mupas, Sacapi, Sacapolo, Sacavanca, Sachico, Sachinemuna, Sachissica, Salola, Salumbinja, Samajimo, Samba Gunza, Sambungo, Samuamba, Samucoco, Sande, Sangongolo, Sani, Santo António da Muínha, Sapinde, Sarinza, Satico, Satoma, Sona, Songue, Sússua, Tarala, Tchicale, Tchiengo,Tombe, Tramangolo,Tumba, Tunda do Biel, Tunda Chissocócua, Tunda Chivava, Umbale, Ungaio, Vala, Viningola, Vionga, Vissela, Vissumba, Zongo e Zundo.
Nesta imensa lista apenas seis nomes portugueses: Silva Porto, Nova Sintra, General Machado, Belo Horizonte, S.João das Mupas e Santo António da Muínha. O nome de Nova Sintra (Catabola) proveio do facto de haver uma Catabola, no distrito do Huambo, o que originava perturbações nos correios. O nome de General Machado proveio de uma homenagem a um general, acérrimo defensor do caminho de ferro, afinal um amigo de Angola. Nome merecido, embora o fundador de Camacupa tenha sido o comerciante português José Lucas da Costa.
Vale ressaltar aqui que o general Machado foi um defensor acérrimo do Caminho de Ferro de Benguela e da sua ligação com a África do Sul. Por isso a primeira estação da fronteira com Moçambique chamava-se Machadodorp. Por ser um assunto pertinente: o general Machado fez o estudo topográfico e o projecto da ferrovia que liga Maputo à África do Sul. O presidente Kruger da África do Sul quiz recompensá-lo, mas ele não aceitou argumentado que já tinha sido pago pelo governo de Portugal!
O padrinho e pai de Belo Horizonte foi um comerciante português que se instalou em uma colina, entre dois cruzamentos de estradas, e baptizou a povoação comercial, devido ao belo panorama que dali se avistava. S.João das Mupas e S.António da Muínha devem os seus nomes a comerciantes. Estes dois nomes englobam nomes indígenas. Não vejo qual o motivo de tanta iconoclastia, em 239 nomes apenas 6 nomes eram portugueses. Note-se que as crismas de Macedo de Cavaleiros para Andulo, Vila Franca para Chinguar foram rejeitadas pelos colonos.
19.-No Tempo Extra (1961/1974) fez-se uma recuperação do tempo que se tinha perdido em A Grande Soneca (1930/1960). Por exemplo, a capital Silva Porto passou a ter uma escola do magistério primário, um liceu e uma escola técnica. Passou a ter um hospital moderno e um aeroporto Além disso possuia dois colégios particulares, com regime de internato. A cidade de General Machado, só como exemplo, passou a ter uma escola técnica e as outras cidades iriam receber, também, escolas do ensino secundário.
Mas o grande triunfo no ensino foi obtido com o programa Levar a Escola à Sanzala. Todos os povoados importantes estavam apetrechados com centro de saúde, escola primária ( com carteiras, acrescente-se).E com os professores recebendo os seus salários todos os fins de mês. As povoações comerciais eram constituidas por casas de construção definitiva, eram embriões da modernidade, futuras vilas e cidades. Em 1970 o Bié tinha 200 postos escolares, com professores habilitados e salários em dia, e 400 postos escolares em missões católicas e protestantes. Todos os alunos recebiam livros e material didático usufruindo de almoço, tudo gratuitamente.
No aspecto humanístico o programa “Levar a Escola à Sanzala” foi o de melhor teor e o que mais contribuiu para a elevação do nível escolar dos africanos. Foi uma mais valia notável para os quadros que ficaram em Angola e que “aguentaram” o vácuo humano que se verificou ao ser proclamada a independência.
20.-Estava em curso o melhor programa agro-pecuário que se instituiu em Angola, levado a cabo no Bié. Era um programa de extensão rural sob a superior orientação inicial do engenheiro agrónomo alemão Herman Possinger. Este programa abrangia todas as actividades necessárias para a modernização rápida do meio rural, com incidência principal no ensino, nas práticas de conservação e fertilização do solo e nas actividades domésticas necessárias ao bem estar e progresso das populações. Mas esta modernização aproveitava as experiências angolanas. Não era um programa destrutivo de antigas práticas, antes as aproveitava, e procurava melhorar. Os resultados eram visíveis, o Bié tinha saído do marasmo em que estava mergulhado desde 1930. Estou convencido de que este programa, difundido por toda a Angola, como era intenção do governo geral,significava um salto de 50 anos em apenas 10 anos. Era um programa que usava em pleno a tecnologia intermédia, com resultados encorajantes.
Temos que recordar o esvaziamento demográfico levado a efeito durante A Grande Soneca (1930-1961). O Bié perdeu milhares de filhos para benefício das roças de S.Tomé e das fazendas de café do norte de Angola. O contrato atrasou o Planalto Central grande produtor de géneros básicos, a favor de produtos tropicais onde se destacava o café. O erro disto foi o de se arregimentarem trabalhadores contra vontade, de se praticarem salários de miséria e de ter havido alguns abusos laborais. Este trabalho sazonal sofreu uma reviravolta profunda a partir de 1961. Acabou o contrato e os trabalhadores eram livres para aceitar o trabalho que lhes era proposto. Os administrativos foram desobrigados de todas as tarefas relacionadas com o contrato (com grande alívio, acrescentamos).

OS OSSOS DA COLONIZAÇÃO (4)

Extrapolando para o resto do país observa-se que Angola em 1973 apresentava estruturas urbanas modernas, em que sobresssaiam a organização administrativa e financeira, a boa rede de estradas asfaltadas, os eficientes caminhos de ferro, a estrutura de ensino ao nível de povoação, a permanente vigilância dos recursos naturais, um bom estado sanitário e um cadastro organizado de excepcional premência nos tempos actuais de ordenamento e regularização fundiárias. Citando o insuspeito geógrafo Orlando Ribeiro(182):«A arrumação urbana de Angola podia-se considerar razoável à escala do imenso território e da baixa densidade da população». Esta arrumação tinha apenas 50 anos.
Havia tudo para singrar, como independente, rumo a um futuro de progresso e com aspirações a ser o primeiro país de África em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
Podem perguntar: e, então a África do Sul? Angola tem muito menor densidade demográfica, tem petróleo e tem maiores recursos hídricos e energéticos. Em termos de século 21, o “século da água”, o país é excepcionalmente rico. Além de já o ser ainda em plena “era petrolífera”.
Vejamos o que sucedeu. É justo adiantar que a geopolítica mundial também contribuiu, e muito, para o colapso total da promissora Angola.Mas não foi a única culpada.A União Soviética, que mal adivinhava que iria morrer de morte súbita nos princípios dos anos 90, alimentava grandes esperanças em ocupar o lugar que a Inglaterra tinha ocupado no século 19 e metade do século 20.
Os Estados Unidos não queriam perder a hegemonia mundial, apesar de estarem desanimados e envergonhados com o desfecho da guerra do Vietname. Era muito difícil para Portugal manter o “status quo” colonial, como tinha conseguido em grande parte do século 20. E era ainda mais difícil manter uma certa influência em Angola, logo que esta obtivesse a sua independência. Portugal não era uma potência económica e estava complexado com o colonialismo desenvolvido ao longo do século 20. A União Soviética convenceu-se que ia ficar em Angola, ocupando o lugar que os portugueses detiveram por mais de quatro séculos. Ilusão! A União Soviética era um modelo elaborado de colonialismo, querendo aparentar o contrário..
Mas não foi a geopolítica mundial a única culpada, repetimos, do descalabro que se instalou em Angola. A geopolítica é a desculpa dos que nada fizeram para defender os angolanos, humildes cidadãos cuja única ocupação era o trabalho no dia a dia; é a desculpa para os ineptos que se querem refugiar no determinismo. Se o país(Angola) tivesse estruturas culturais, financeiras, jurídicas, militares, diplomáticas e políticas, tão boas como as administrativas, as económicas, as de ensino (infelizmente com um injustificável atraso), de saúde, de comunicações (também com atraso) e outras, talvez tivesse apresentado resistências internas às investidas das duas potências mundiais.
Resumindo: se tivesse quadros angolanos preparados, se tivesse uma habitualidade de eleições e uma cultura de tolerância , ofereceria outra resistência às multinacionais que se queriam instalar. Elas instalar-se-iam, não vamos imaginar um quadro irrealista de obstrução ao grande capital. Só a esquerda vesga é que imagina um país sem multinacionais. Igual a Cuba e à Coreia do Norte. Como imaginaram, com elevada dose de ingenuidade e maior ainda de ignorância, os militares que derrubaram Caetano.
Mas infelizmente Angola não tinha estruturas humanas no topo , nem tinha a mínima tradição democrática de eleições para resistir a um capitalismo selvagem. Tudo estava e girava em mãos metropolitanas submetidas, ainda por cima, a uma ditadura impenetrável e avessa a quaisquer mudanças. O povo angolano estava mergulhado em um absoluto e impenetrável nevoeiro político onde qualquer oportunista encontraria campo para militâncias. Até os chamados “civilizados” detinham um analfabetismo político de proporções confrangedoras.
Vale a pena fazer-se uma retrospectiva das doenças em Angola, tanto mais que é um assunto que praticamente ocupa hoje sempre o seu espaço nos jornais e na TV, infelizmente pela negativa. As doenças foram, em séculos anteriores, um dos principais obstáculos à entrada da modernidade. Elas ceifavam, abruptamente, os europeus que se arriscavam a viver em Angola.
Até ao aparecimento do DDT em 1945 os mosquitos eram os eternos micro-companheiros em todas as casas. Portadores da malária (ou paludismo) atacavam de noite. Na verdade só atacava a fêmea que precisa da hemoglobina do sangue para poder alimentar as larvas. Antes de se ter conhecimento sobre o ciclo evolutivo do Plasmodium, de que o mosquito é um dos vectores, sendo o ser humano ou quaisquer mamíferos, o outro vector, e ainda não se ter descoberto o quinino, a mortandade causada pela malária atingiu números de hecatombe. Neste livro referimos a letalidade em S.Tomé, em Benguela e em menor escala em Luanda.
Dizia-se, com uma certa lógica, que só eram angolanos aqueles que partilhavam os mosquitos.
A fêmea do mosquito, conhecido no Brasil como muriçoca, põe os ovos em águas estagnadas de onde sairão as larvas que se transformarão em insecto perfeito com asas, é a fase “aeronáutica”. É neste estágio que saem as “esquadrilhas nocturnas” em busca de sangue fresco.
A secagem de pântanos, através de eucaliptos, o saneamento das cidades com a eliminação de quaisquer focos de água estagnadas, o uso de mosquiteiros e, posteriormente de repelentes, e o aparecimento do DDT transformaram o paludismo numa má recordação, em meados da década de 50. Deve ressaltar-se que o quinino atenuou, bastante, a letalidade da malária. Mas este medicamento, de triste memória, deixa sequelas para o resto da vida. Uma delas é a surdez na velhice!
Mas o grande mérito da erradicação da malária deve-se às severas medidas de profilaxia, complementadas com as aplicações de DDT. Os delegados de saúde e os médicos de Angola, secundados pelos administrativos, eram implacáveis nas medidas de saneamento. Foi um bom trabalho dos médicos e dos administrativos para a eliminação do paludismo, O maior amigo do mosquito, transmissor da malária, é um pneu velho. É indestrutível, é quente e não se consegue tirar, com facilidade, a água do seu interior. É uma luxuosa maternidade de mosquitos.
Até meados da década de 50 o quinino ou quina fazia parte da vida quotidiana de todos os angolanos. Era tomado em drageias (comprimidos) e em injecções. Umas e outras venha o Diabo e escolha. As drageias eram em cru, não tinham qualquer revestimento, se tocassem na língua e boca a sensação era única. Deve ser a substância mais amarga que existe. Com as injecções era pior, embora fossem de maior e rápido valor curativo. Eram dolorosíssimas e, às vezes, agravavam-se ou seja não eram absorvidas pela massa muscular e formavam um abcesso que, depois, tinha que ser lancetado e levar um dreno durante umas semanas.
Uma doença, quase sempre fatal, era a biliosa. Responsável por milhares de mortos era atribuida a uma forma terminal do paludismo. Uns atribuíam à própria degeneração do fígado e dos rins provocada pelo quinino em excesso. Uma outra teoria afirmava que era uma forma diferente da febre amarela. A doença começava pelos habituais febrões, acima de 40º C, com as urinas acastanhadas. Quando se chegava à fase de urinar sangue, era o fim. Até à década de 50 o número de óbitos era tristemente grande. Durante o meu tempo de escola primária e de liceu morreram mais de 10 alunos, nas turmas que eu frequentei, vitimados por biliosa. Na Mocidade Portuguesa a quina ( três soldadinhos- lusitos- à frente, e dois atrás, deixando vago o lugar do meio, como a quina dos dados) era a unidade fundamental da ordem unida. Nós dizíamos que na sena tinha morrido um lusito. Por isso se chamava quina, cujo nome talvez afugentasse o paludismo. Nós marchávamos em quina.
Um bichinho, que nos moía a paciência era a universal barata. Só que as de Angola devem ser as mais inteligentes do globo. Elas auto-programaram estratégias de defesa e fuga como eu não vi em outras terras por onde passei. O melhor insecticida para as baratas continua a ser o chinelo, porque não agride o meio ambiente, embora agrida a barata. Mas o ataque à chinelada exige muita concentração, boa forma física e estômago forte, porque não é agradável ver-se a massa esmigalhada de uma barata.
As baratas angolanas tinham táticas de defesa surpreendentes. Fugiam em zig-zags desconcertantes, faziam paradas e mudanças de direcção mais rápidas do que o Eusébio nos seus gloriosos e inesquecíveis dias, e acolhiam-se, quando não conseguiam um bom abrigo, nos cantos das casas onde convergem três arestas. É impossível matá-las com uma chinelada, talvez se consiga matar com os modernos sapatos pontudos. Mas exige muita pontaria.
As fábricas de insecticidas apresentaram uma arma secreta, por volta de 1950, que provocou uma devastação no mundo das baratas. Era o célebre Flit, o DDT líquido que se espalhava com uma bomba de pulverização, ainda longe dos actuais sprays. O Flit apareceu no Brasil com um anúncio onde mostravam uma dona de casa com um chinelo na mão e uma legenda por baixo: não faça isso D.Judite, use Flit. Foi uma hecatombe inicial mas, uns anos depois, as baratas adquiriram resistência. Dizia-se, por piada, que elas se alimentavam, e engordavam, com funje de farinha (pó) de DDT.
A bitacaia, matacanha, ou bicho de pé como é conhecida no Brasil, ou pulex penetrans como é conhecida pela ciência, foi outro parasita que fazia parte do dia a dia de Angola, até meados da década de 50. Medidas de profilaxia (chão cimentado e creolina) e posteriormente o DDT praticamente acabaram com este indesejável bichinho.
Supõe-se que a bitacaia entrou em Angola, via Brasil, em séculos anteriores ao século 19, e dali propagou-se para toda a África, até Zanzibar, levada pelas caravanas de escravos. No Brasil a bitacaia ou matacanha é conhecida por bicho de pé. Os africanos não se aperceberam do perigo nos primeiros tempos de ignorância. A bitacaia, um pequeno ponto preto quando penetra na pele, nas mãos e nos pés junto às unhas, começa por provocar uma agradável comichão. É o seu primeiro e último aviso. A pessoa escolhida pela pulga, mas que já esteja tarimbada, sabe logo que é uma bitacaia e imediatamente trata de a tirar. Desinfectava-se o local com alcool, na verdade lavava-se apenas, porque o alcool nada desinfecta. O meu pai uma vez expunha ao Dr.Strangway as maravilhas do alcool como desinfectante. Comentário do distinto médico: “alcool é bom, mas bebido”. Depois procedia-se à extracção da bitacaia com um alfinete de segurança, grande, previamente passado em uma chama. A extracção era uma operação rápida para quem sabia, e ainda tinha bons olhos. A pulga vinha inteira na ponta do alfinete que era levada a uma chama. Um estalido e acabou a pulga . Depois nova desinfecção com alcool ou tintura de iodo. E gritos, se fosse extraído um saco.
Se a bitacaia não fosse extraída, em dois dias começava a formar uma colónia (saco), que em menos de uma semana ficava com o tamanho de uma ervilha sem já provocar comichão, mas com o aspecto de uma ferida infectada. Depois “explodia” em pústula. O saco, um verdadeiro super mercado de infecções (tétano e septicemia), era extraído também com um alfinete, mas com muito cuidado para não rebentar.
Os efeitos da bitacaia foram devastadores porque os africanos nada sabiam sobre ela e, no panorama tenebroso da escravatura, ninguém os elucidava. John Reader (175) cita uma observação de um explorador alemão Oscar Baumann em 1894: « Vimos pessoas em Uzinza (actual Tanzânia) cujos membros estavam desfeitos. Aldeias inteiras têm morrido devido a esta moléstia». Henrique de Carvalho(48) deixou escrito que« na estrada de Dombe ao Cuio em 1876 registou-se uma epidemia de pulex penetrans (bitacaia) que causou a morte a mais de 1 000 pessoas e afugentou muita gente daquela região».
È curioso transcrever o que Livingstone escreveu (128), a respeito da bitacaia ( que ele denomina tampan como era conhecida em Zanzibar), quando passou em Luanda em 1854: «varia de uma cabeça de alfinete até um grão de ervilha. Logo que você é mordido pelo tampan, você sente uma dor ardente misturada com comichão que invade toda a perna; logo que o veneno chega ao abdomen causa vómitos e diarreia com violência; quando não há diarreia há febre como eu senti em Tete onde fui mordido mais tarde; soube de um Português inteligente que morreu após a febre. A solicitude de meus amigos de Tete manifestada em relação aos meus Zambezianos, para os preservarem dos tampans, que são comuns em quase todos os povoados, prova o terror que lhes inspira este insecto; quanto a mim, não deixei de sofrer durante oito dias com uma comichão bastante activa na parte mordida».
O folclore de Angola contava que um funcionário, ao embarcar de licença a Portugal, foi “contemplado” com uma bitacaia. Resolveu levá-la até Portugal, para mostrar aos amigos uma “fera de África”. Morreu, durante a viagem, com tétano.
No Brasil um vaqueiro diz para outro: as três melhores coisas da vida são dinheiro, muié e bicho de pé. Uai, responde-lhe o companheiro porquê bicho de pé? Uai se não tivé o bicho de pé, p`ra quê muié?
21.-As doenças. A melhoria das habitações contribuiu bastante para a erradicação da bitacaia e de outras doenças. Quando os caminhos de ferro penetraram no interior de Angola, complementados logo a seguir com o automóvel, ficou viável o transporte de cargas pesadas.O cimento entrou em Angola e passou a pavimentar todo o interior das casas, aliás tornou-se obrigatório, no segundo consulado de Norton de Matos. Foi um duro golpe nas bitacaias, mas elas ainda duraram uns anos até à chegada do DDT. As bitacaias apareciam, em grande profusão, no milho a granel. Quando começou a ser expurgado (matança de parasitas com tetracloreto de carbono em câmaras herméticas) desapareceram quase por completo.
Os oxiuros são minúsculos vermes intestinais que vivem no intestino grosso, mais propriamente no ceco dos seres humanos. Durante a noite as fêmeas ( 10 mm) alojam-se no ânus, onde já se encontram os machos (3 mm) para a desova. Isto provoca coceira e profunda irritação no hospedeiro. A transmissão é feita por infestação e através das fezes. A erradicação da “doença” faz-se através de medidas rigorosa de higiene ( banhos diários de chuveiro) e na administração de vermífugos.
Em Angola, onde as condições de higiene no século 19 e primeiros anos do século 20 eram deploráveis, esta “doença” atingia números de epidemia e casos de extrema gravidade. Silva Porto descreveu, com minúcia, a oxiuríase ou maculo como era conhecida nos planaltos de Angola. Capelo e Ivens resgataram um adolescente, escravizado por uma quibuca (caravana só de africanos), que estava a definhar com o maculo.
Esta doença desapareceu de Angola graças às medidas de higiene e de profilaxia e aos potentes vermífugos que apareceram logo a seguir à guerra 39/45. Uma outra medida, que contribuiu para a quase erradicação da doença, foi a obrigatoriedade de cimentar o interior das residências, facilitando a “creolinagem” do chão. O facto de ser cada vez maior o número de gente calçada talvez tenha também contribuido para o decréscimo da doença.
A febre das mabatas era uma doença temida em Angola porque era de difícil cura e provocava febres altas, recorrentes. O agente da doença era uma bactéria ou espiroqueta transmitida através de uma carraça. Esta agarrava-se aos mamíferos e tinha o seu habitat em antigas palhoças de adobe ou barro chapinhado em paus ( pau a pique). Existem centenas de variedades de carraças e de bactéria da mesma estirpe espalhadas por todo o Mundo. O agente em Angola era o Spirochaeta dutonni, observado em 1906. O vector era uma carraça o Ornithodorus Moubata e, daí, o seu nome mabata. A febre das mabatas era semelhante aos ataques da malária e, quando não era diagnosticada convenientemente, era tratada com quinino. Em Angola esta doença era particularmente grave.
Fig 11 Vector da febre das mabatas Ornithodorus Moubata(vista de cima e de baixo) uma carraça cuja fêmea se alimenta do sangue dos mamíferos, transmitindo uma bactéria que provoca febres recorrentes , altíssimas. Existia em casas abandonadas, de barro cobertas de colmo(capim). Norton de Matos incentivou a instalação de dezenas de cerâmicas que impulsionaram a construção de casas de tijolo, cobertas com telhas e chão cimentado. O aparecimento do DDt foi o golpe mortal na febre das mabatas, conhecida nos Estados Unidos da América como Mal de Lyme.

OS OSSOS DA COLONIZAÇÃO (5)

Antes do aparecimento dos antibióticos, um remédio drástico, para a febre das mabatas, era a administração, em injecções, do célebre 914. Constituição deste “remédio”: mercurio. Dizia-se que o nome 914 era devido ao facto de se terem feito 914 experiências até se conseguir uma fórmula de mercurio assimilável pelo organismo e que não matava o doente. As injecções eram dadas nas veias por um enfermeiro experiente. E era assim: espetava-se agulha e depois injectava-se um pequeníssimo volume e esperava-se pela reacção do doente. Se nada houvesse, injectava-se mais uma pequena dose e esperava-se. E assim até à dose total. Ou letal se houvesse infelicidade. As injecções de 914 eram o terror de toda a gente. Eram usadas, também, para combater a sifílis e as doenças venéreas renitentes. Muita gente julgava que o nome provinha da guerra de 1914.Mais tarde descobriu-se o salvarsan cujo componente era o arsenio, outro veneno.
O nome científico da “doença do sono” é Tripanossomíase Africana que é causada por um protozoário flagelado. O nome popular da Tripanossomíase Americana é “doença de Chagas”. A doença do sono caracteriza-se por febres intermitentes, inflamação dos gânglios linfáticos, inchaços generalizados e, claro, por uma sonolência incontrolável. A doença foi devastadora noutras épocas. Ironicamente foi ela que evitou a matança total dos grandes mamíferos africanos, em especial do elefante. Este animal, sentindo-se acuado, por causa da procura do marfim, refugiou-se em áreas de grande incidência da doença do sono ou em áreas com falta de água.
O mal é transmitido através de uma pequena mosca a Glossina Palpalis ou tsé-tsé como é conhecida em toda a África. Os hospedeiros do ciclo evolutivo da doença são a mosca e os mamíferos. Destes exceptuam-se os animais selvagens africanos aclimatados e com anti-corpos para a doença. O gado bovino não estava imune e morria quando se fixava em uma região com aquela mosca. Mais uma vez, ironicamente, foi a mosca que evitou a formação de pastos para os bois e, consequentemente, a devastação da flora natural. Alguns grandes parques naturais devem muito da sua existência à mosca tsé tsé. Foi só em 1910 que se correlacionou a doença com o vector mosca.
A tsé tsé ingere os tripanossomas aspirando o sangue humano ou de outro qualquer mamífero. O ciclo evolutivo na mosca é de cerca de 20 dias findos os quais o tripanossoma aloja-se na saliva. A partir daqui a transmissão dá-se com qualquer picada do insecto. O período de incubação nos mamíferos é de 2 a 3 semanas. A picada no homem fica com 2 cm de diâmetro e apresenta uma côr amarela esbranquiçada que desaparece em poucos dias. As febres são intermitentes, podendo atingir mais de 40ºC. Duram semanas. Depois começam as sonolências que conduzem à morte se a doença não for tratada. Na fase terminal o sono é tão profundo que induz as pessoas a suporem que o paciente já morreu. Existiam vários remédios que sustinham a doença na fase inicial. O mais conhecido em Angola era a pentamidina que era administrada através de injecções intramusculares. As célebres Brigadas de Pentamidinização operaram um verdadeiro milagre sanitário em Angola com a redução da doença a níveis mínimos, sem expressão estatística. Os médicos e enfermeiros eram dos melhores do continente africano.
A Tripanossomíase Americana , mais conhecida por “doença de Chagas”, tem a mesma etiologia da “doença do sono” africana. Os doentes apresentam inchaços nos gânglios linfáticos, no fígado, no baço e no coração. O agente Tripanossoma Cruzi é transmitido através de insectos da família dos Reduviidae parecidos com baratas de cor preta. No Brasil são conhecidos popularmente por barbeiro ou chupão. Esta doença ataca também os mamíferos.
Foi o médico brasileiro Carlos Chagas (1879/1934) que descobriu o Tripanossoma Americana e baptizou-o com o nome de Cruzi em homenagem ao médico brasileiro, seu mestre, Osvaldo Cruz. Sózinho Carlos Chagas fez o estudo completo da doença sob os aspectos etiológicos, patogénicos, anatómicos, patológicos, sintomáticos, suas formas clínicas, meios de transmissão, epidemiológicos, e profiláticos. Um estudo completo, caso único na história da medicina mundial. Chagas estabeleceu a correlação da doença e seus vectores. Uma história que, talvez, pertença ao folclore brasileiro narra que a criança com 7 anos de idade a quem o médico Chagas retirou o sangue, onde descobriu o tripanossoma, viveu para lá dos oitenta anos, um caso de convivência amigável com a doença.
No Brasil, como já se afirmou, o agente vector do Tripanossoma Cruzi é conhecido, popularmente por barbeiro ou chupão, devido à picada sangrenta que ele faz, geralmente, na cara das pessoas, porque o resto do corpo está tapado durante o sono. A área preferida para a picada, por ser de pele macia, é a das pálpebras.
Uma mãe leva a filha ao médico, A moça anda pálida e sem forças. O médico faz análises de sangue, chama a mãe e diz-lhe: eu já desconfiava, a sua filha foi chupada pelo barbeiro. Bem que me parecia, comentou a mãe, e o safado dizendo a toda a hora que era engenheiro civil!
A bilharzíose ou esquistossomíase é originada por helmintos (lombrigas) que se alojam nos intestinos ou na bexiga. A doença existia em águas estagnadas. Há duas variedades a africana ou bilharzíose urogenital e a americana ou bilharzíose intestinal. Em Angola a doença não estava tão generalizada como no Brasil o que se pode explicar pela morfologia fluvial: os rios de Angola são, regra geral, turbulentos com poucas águas estagnadas. O tratamento era feito à base de antimónio que, já de si, é um veneno. Eram as célebres injecções de Fuadine, temidas por todos os pacientes.
A amebiana ou amebíase é provocada por um parasita protozoário que se aloja nos intestinos, podendo invadir o fígado. O agente é a Entameba histolística. A água de alguns rios angolanos é portadora desta doença. Só a água que saía das rochas ou do solo (ressurgências) era de confiança. A característica principal desta doença era a diarreia violenta que evoluia para hemorragias. O tratamento era longo, os doentes atingiam fases dramáticas de emagrecimento. Os antibióticos contribuiram bastante para reduzir a periculosidade da doença, embora não fossem milagrosos como, por exemplo, na febre das mabatas.
Era inexistente a cólera em Angola devido ao bom estado sanitário das cidades. Nas aldeias africanas, apesar de não haver saneamento básico, nunca se verificou a mínima ameaça de tal doença, porque os aglomerados eram pequenos, e havia cuidados rudimentares de profilaxia. A unica ameaça, no século 20 no tempo colonial registou-se nos princípios dos anos 70, mas a prevenção foi tão eficaz que se registaram muito poucos casos.
O tétano era uma ameaçadora doença até meados dos anos 30, o índice mortal era de 100%. È provocado por um bacilo que resiste a altas e a baixas temperaturas. Forma esporos e fica incubado durante anos até encontrar um hospedeiro. Não tem agente transmissor mas sabe dissimular-se, geralmente está incubado em velhos ou enferrujados objectos metálicos (parafusos, pregos,facas, canivetes, garfos, arcos de barril etc). Os solos contaminados com fezes são também um habitat natural do bacilo. Quem pisasse um prego ferrujento estava sujeito, com grandes probabilidades, em contrair o tétano. A doença provoca espasmos e convulsões. As contracções espasmódicas nos maxilares são um indício certeiro da doença.Os médicos em Angola empreenderam, desde cedo na década de 30, um ataque frontal à doença: a vacina anti-tetânica era obrigatória e gratuita, o soro anti-tetânico era o primeiro a ser injectado nos feridos que apareciam nos hospitais. No fim do Tempo Extra a doença praticamente não fazia vítimas devido à boa cobertura sanitária. Sabia-se que ela continuava nos seus locais predilectos, especialmente em pregos ferrugentos. Por isso era obrigatória a vacina anti-tetânica.
Em Angola corria uma lenda: um alfaiate inadvertidamente palitou os dentes com uma crina de cavalo daquelas que se usavam antigamente nos colarinhos dos casacos para lhes dar mais rigidez. Em duas semanas morreu com o tétano.
O bócio é o aumento da glândula tireóide ( maçã de Adão), por isso é denominada hipertireoidismo. Uma característica é o aumento do pescoço formando uma pronunciada papada.A doença é também conhecida por papeira, embora este nome pertença a outra moléstia a parotidite ou inflamação das glândula salivares, no Brasil denominada caxumba. Outra característica do bócio é o esbugalhamento dos olhos. Esta moléstia é provocada por deficiência de iodo nas águas e nos alimentos. Em Angola esta doença era muito comum nos planaltos, com grande incidência em regiões típicas, como por exemplo grande parte da bacia do rio Luando, na área do habitat da Palanca Preta, e nas Lundas. O sal marinho com iodo, que se tornou obrigatório, o uso quotidiano de tintura de iodo, vendida pelos comerciantes, e a difusão do peixe seco do mar(ombisse, corruptela da palavra peixe), de Moçâmedes de Porto Alexandre e da Baía dos Tigres, baixaram drasticamente o índice desta enfermidade.
A filariose (elefantíase) era provocada por helmintos sendo o homem o principal hospedeiro, embora os macacos, os gatos e os cães estivessem sujeitos à doença. A filariose é transmitida por insectos hematófagos com especial relevância para os mosquitos. O helminto adulto circula pelo corpo onde parasita os vasos linfáticos, o tecido conjuntivo sub-cutâneo e as cavidades do corpo: as larvas circulam no sangue onde se acumulam em camadas superficiais sob a pele. Estas camadas entopem as veias e dão origem a inchaços brutais originando, quando nas pernas, a característica “pata de elefante” daí derivando o nome de elefantíase. A confirmação desta doença era feita através de observações microscópicas. Não havia cura, embora houvesse tratamentos mitigadores desagradáveis porque eram à base de substâncias venenosas. As medidas de prevenção, instituídas em Angola, baixaram bastante os indices desta doença. A prevenção era feita sobre os insectos hematófagos, em especial sobre os mosquitos. Uma variedade desta doença era a oncocercose, com as mesmas caracteríticas da filariose, mas que levavam à cegueira. O mosquito, vector da oncocercose, só vive em ambientes de água batida, ou seja, próximo de quedas de água. Por isso era conhecida por doença das mupas ( quedas de água).
Em Angola houve sempre muita aversão em viver-se próximo de rios, por isso a doença não era vulgar. O mesmo já não acontecia no Congo Belga (actual República Democrática do Congo) onde era comum encontrarem-se aldeias inteiras de cegos. Faziam uma vida normal, o que deixou completamente espantado um antropólogo belga. Apenas um único pormenor saltava à vista: caminhavam em fila, sempre que se deslocavam, o guia era o que ainda tinha uma certa visão. Mas uma pessoa menos avisada não dava pela cegueira total na região, onde os habitantes tinham controle sobre quaisquer pessoas estranhas que lá entrassem.
A febre amarela é originada por um vírus através de um mosquito o aedes aegypti que transmite a doença, por picada, depois de um período de incubação de duas semanas.A fêmea infectada, ao picar um mamífero para recolher sangue, transmite o vírus. Ela põe os ovos em qualquer recipiente húmido, como por exemplo vasos de plantas dentro das próprias casas. Só em 1926 é que várias comissões internacionais, que estiveram em estudos em África, concluiram que a febre amarela é um vírus transmitido através do mosquito referido. Os hábitos do mosquito aedes aegypti só foram conhecidos muito tempo depois e, por isso, as brigadas sanitárias desesperavam porque não conseguiam erradicar os insectos. Eles estavam dentro das habitações, em especial nos vasos de plantas.Cabe aqui a frase “dormindo com o inimigo”. Em Angola os meios de erradicação dos mosquitos e, especialmente a vacinação obrigatória extinguiram a doença.
A lepra era causada pelo bacilo de Hansen por isso é que a imprensa denominava a doença por hanseníase, tirando assim a carga negativa que aquele nome carregava desde a Idade Média. Os serviços de saúde angolanos concentraram-se, em força, na erradicação da doença. Boas gafarias, muita higiene e a administração de sulfonas estavam acabando com a doença. Estou convencido que hoje seria apenas uma má recordação do passado.
A poliomielite foi uma doença universal que infelizmente se propagou por Angola. Foi das primeiras regiões no mundo a usar a vacina Salk, depois substituida por uma vacina oral a Sabin. Em 1964 já era obrigatória a vacina quádrupla em crianças: Sarampo, tétano, difteria e poliomielite. Esta doença estava, praticamente, erradicada.
Uma temível doença em Angola era a hidrofobia, popularmente conhecida por raiva. Trata-se de um vírus, que se instala na saliva dos animais infectados, animais domésticos especialmente, e que se transmite através de mordidas. Os sintomas da doença são febre, inquietação e depressão. A inquietação acaba por se transformar em excitação incontrolável: o doente espuma e tem espasmos na garganta que o impossibilitam de beber qualquer líquido. Daí o nome hidrofobia. A morte é inevitável, não há qualquer espécie de cura, mas há o soro anti-rábico que é eficaz em quase 100% dos inoculados, desde que não haja atrasos nas aplicações.. Desde muito cedo, ainda na década de 20, que esta doença foi atacada com todos os recursos. Qualquer pessoa, em qualquer ponto do país, mordida por um animal, era imediatamente submetida a uma bateria de injecções dolorosas, na barriga. A doença nos animais era vigiada pelos Serviços de Veterinária. Estava praticamente extinta, o ultimo caso, devido a uma lamentável displicência, foi em 1964.
A doença mais terrível em África foi a varíola, de resto foi ainda mais violenta no continente americano. Recordamos que as civilizações Incas, Maias e Astecas, assim como as diversas nações nativas nos Estados Unidos, esfacelaram-se em parte devido à aterradora moléstia.
Para África a doença foi trazida da Europa e encontrou indivíduos com muito pouca resistência ao vírus. Os resultados, em toda a África foram devastadores. De uma expedição de Silva Porto ao Barotze (Zâmbia), em 1880, composta por centenas de pessoas, regressaram umas dezenas, figuras fantasmagóricas com o olhar carregado de terror. A doença começa com umas manchas vermelhas localizadas principalmente na cara, nos braços e nas pernas. Sob febres violentíssimas as manchas transformam-se em pápulas, em vesículas que se juntam umas às outros formando “tubos” que, depois, rebentam em pústulas.
O aspecto do doente é aterrador, até o pessoal médico acaba por esquecer o juramento de Hipócrates e trata de escapar com vida, segundo o velho lema “Presença de espírito e Ausência de corpo”. Jorge Amado, no livro “Tereza Batista cansada de guerra” descreve uma epidemia de varíola no interior do estado de Sergipe. O capítulo intitula-se “ABC da peleja entre Tereza Batista e a Bexiga Negra”. O abecedário é percorrido em 48 páginas de um dramatismo acompanhado de cenas picarescas descrevendo o cinismo e a cobardia dos responsáveis pela cidade de Boquim no interior do estado de Sergipe. E destacando a valentia das mulheres populares, verdadeiras heroínas dentro do pânico que se instalou na cidade. O capítulo é uma obra prima da literatura.
Uma das primeiras medidas de Norton de Matos, ainda no seu primeiro governadorado em 1912, foi a cobertura de todo o território com a vacina contra a varíola. Na década de 30 estava praticamente erradicada, mas a vacinação, obrigatória, ostensiva e gratuita só foi abolida após a Organização Mundial da Saúde ter declarado a doença como extinta em 1980. Em Angola a varíola foi extinta 40 anos antes de a Organização Mundial de Saúde ter declarado que mais nenhum caso se tinha verificado em todo o mundo.
Antes do aparecimento das sulfamidas e, depois, dos antibióticos (a penicilina como eram designados quando apareceram), era vulgar infectar-se qualquer ferimento. Qualquer ferida, mesmo “desinfectada”, tinha uma grande probabilidade de ficar infectada e, às vezes, fora de controle.
Manda a verdade que se diga que os desinfectantes (alcool, água oxigenada mercuro-cromo e tintura de iodo) não eliminavam totalmente as bactérias que nos rodeavam. Eram vulgares os panarícios, as unhas encravadas e o acne originarem infecções. Quando a infecção se tornava grave podia dar origem a uma septicemia. Esta doença é provocada pelo envenenamento do sangue com bactérias, e provocava a morte, antes do aparecimento das sulfamidas e dos antibióticos. Nas cidades havia postos médicos, abertos todo o dia, destinados a fazer curativos de feridas, a darem injecções de quinino e de pneuquinol para as bronquites,e a inocularem vacinas ( varíola, tétano, febre amarela e soro anti- rábico especialmente). Mudar o penso a uma ferida era um hábito corriqueiro. Conheci um funcionário de finanças, filósofo (infelizmente não pôde continuar os estudos) , que dizia que “ir ao posto de socorros tem o seu quê de metafísico, “porque penso, logo existo”.
Só a partir de 1920 é que os partos em Angola, das mulheres europeias, deixaram de ser um motivo de inquietação. Relatos antigos elucidam-nos sobre as parturientes europeias em Angola: quase sempre os partos eram fatais para mãe e filha. A febre puerperal, que vitimava as parturientes, não estaria relacionada com a facilidade infeccional que existia em Angola?
O herpes labial era uma afecção que aparecia, regra geral, após um ataque de paludismo.Para curar o herpes havia os três Ps: prazo, paciência e um penso para esconder a ferida.
Faziam parte da vida das pessoas os desinfectantes creolina, permanganato de potássio, mercuro-cromo, tintura de iodo e o inócuo alcool. Na higiene avultavam os sabonetes mercuriais Lifebuoy ( nada tem a ver com o actual) e Sapocian (liquido especial para relações sexuais suspeitas).

OS OSSOS DA COLONIZAÇÃO (6)

22.- Introdução das frutas europeias.Os sertanejos trouxeram para Angola quase todas as frutas dos climas temperados. No século 19 já eram vulgares o figo, a nêspera, o limão, a laranja , a tangerina, a romã, o marmelo, a maçã e a pera. A uva não vingou nos planaltos: chove no Verão e não há temperaturas acima de 30º C. Com a entrada dos bóeres a fruticultura ficou mais enriquecida, especialmente na Huíla, pois eles trouxeram mudas e sementes do Cabo. Na década de 20, quando se registou uma onda imigratória de portugueses e estrangeiros, a fruticultura sofreu um notável incremento. Na Huíla, onde os solos apresentam embasamentos calcários e o clima não é tão chuvoso como no planalto central, apareceram grandes pomares de frutas europeias de boa qualidade, já em fins do século 19. Na década de 20, com o caminho de ferro de Benguela totalmente desenvolvido (1929), despontaram no Planalto Central interessantes pomares de frutas de climas temperados. O morango, a maçã, a pera, o figo e a romã ficaram vulgarizados, embora sofressem condicionamentos resultantes da adaptação e da acidez dos solos. Eram frutas que podiam ser amplamente melhoradas, com investigação e tecnologia. E com dinheiro como é óbvio.
23.- As frutas das savanas. Todos os planaltos eram muito ricos em frutas silvestres, muito apreciadas pelos animais selvagens. Talvez o fruto mais característico seja a nocha,locha ou ucha cuja classificação botânica é “parinaria mubola”. Provinha de uma árvore com 10 a 15 metros de altura, de tronco grosso, folhas elípticas. O fruto era do tamanho de um kiwi, de cor amarela acastanhada, com um grande caroço e polpa amarela doce, adstrigente. Deve ser a fruta mais odorífera que existe.E, para nós, a mais deliciosa de todas. Quando está madura o chão fica completamente atapetado com frutos exalando um cheiro fortíssimo e delicioso muito semelhante ao ananás e ao abacaxi, mas muito mais intenso. Este odor, que se propaga até mais de 20 metros, atrai centenas de animais, entre os quais os elefantes que são os mais gulosos, e os macacos. O fruto, já no chão, fermenta e provoca bebedeiras. Segundo se dizia os elefantes, e os macacos principalmente, gostavam de tomar uns “pifos” de nochas fermentadas. O caroço, exageradamente grande e duro, continha duas amêndoas cujo sabor era semelhante ao das genuínas amêndoas. Os elefantes comiam toneladas de nochas e depois expeliam os caroços que eram disputados por quem encontrasse as fezes. O nome da árvore estava aportuguesado para nocheira. A árvore dá uma optima madeira, de constituição semelhante ao carvalho, o que a coloca na lista vermelha, ou seja propícia à gula dos predadores humanos. A aniquilação das nocheiras das savanas, para madeira,lenha e carvão, vai originar o desaparecimento de toda uma cadeia alimentar dos animais selvagens, especialmente dos mamíferos. A destruição das savanas e das florestas é o fim dos animais selvagens.
Outra fruta muito conhecida em todo o país era o maboque, também designado por mapole ou upole. O nome botânico é Strychnos shumannianna segundo a classificação de Gossweiler. A árvore é de tamanho médio e o fruto parece uma laranja, meio ferrujenta, embora a casca seja muito dura. Um pedúnculo bastante comprido suspende o fruto verticalmente dos ramos da árvore. O envólucro é muito duro, só com um objecto pesado se consegue quebrar. Dentro existem sementes de côr cinzenta nadando em um líquido espesso e coagulado. O sabor é agridoce. Em grandes quantidades provoca solturas. Era perigoso, para quem não os soubesse distinguir.Havia uma variedade em tudo semelhante, que era venenosa, talvez a classificação botânica tenha levado isso em conta com o termo Strychnos.
Um fruto delicioso, com o qual se faziam compotas e geleias, era o lôengo. A respectiva árvore era de tamanho médio, mas apareciam exemplares com cerca de 15 metros de altura.Assemelhava-se à ameixa preta pequena. O caroço era muito grande, deixando uma polpa vermelha muito estreita. Era mais para chupar do que para comer. Talhava os dentes de tão ácida, matava a sede e enganava a fome. O nome botânico é “Anisophyllia fruticosa”. A compota era deliciosa.
A lombula ou ombula aparecia em árvores e arbustos e o seu fruto era redondo, amarelo, do tamanho de um damasco. Era o fruto mais doce das savanas. Dentro da polpa havia quatro caroços sumarentos.. Comida em excesso provocava soltura.
Um fruto vulgaríssimo era a matúndua ou massunje. Era arbustiva e anual. Cada “bissapa” só dava um fruto, enterrado, vermelho, de casca grossa. O fruto era “arrancado”do chão, como se fosse uma cebola. A polpa era esbranquiçada com pequenas sementes pretas. Era ácida, mas dava sumos deliciosos. Matava a sede. Quando passava uma queimada, era deslumbrante ver milhares de frutos, vermelhos, emergindo no chão preto. A casca do fruto tinha propriedades medicinais. As folhas exalavam um cheiro carcterístico, fazendo lembrar os desinfectantes.O arbusto era ornamental, com folhas lanceoladas de um verde envernizado. A matúndua concentra muita vitamina C que nunca foi apercebida pelos viajantes do século 19, em especial pelo viajante inglês Cameron que chegou a Benguela atormentado com o escorbuto.O próprio botânico Welwitsch, que classificou a célebre planta do deserto de Namibe a Welwitshia mirabilis, sofreu um ataque de escorbuto.

Fig 12 Outro fruto vulgaríssimo e arbustivo era a cassússua ou matipa-tipa. O fruto está envolvido em um cápsula verde, enquanto não atinge a maturação. Quando maduro, a capa protectora fica seca. O fruto é uma” uva” isolada e rósea ou amarela, conforme a variedade. O sabor é agridoce, delicioso. É nutritivo e digestivo. É vendido em Portugal, vindo da Colômbia, com o nome de physallis. Muito caro. Em Espanha já é utilizado em culinária. Houve colonos que propuseram a comercialização deste fruto; foram escarnecidos pelo governo colonialista.
.
Muito vulgar, especialmente no sul de Angola, era o mirangolo (omuniangolo), semelhante a uma uva preta. O sabor era agridoce e a planta era arbustiva. Faziam-se compotas e geleias.
Menos vulgares, mas que eram fundamentais para a biodiversidade das savanas, eram: cunucuna, árvore com 2 a 3 metros de altura, fruto parecido com a goiaba; curiungo de bagas pequenas; maravassusso arbusto de 20 a 30 centímetros, com o fruto em cachos parecido com uma romã pequena, de sabor muito agradável; longonguena arbusto de 50 centímetros, de fruto redondo, pequeno, vermelho; olomone arbusto de 50 centímetros bagas pequens, pretas, do tamanho de um grãos de milho; sangala, fruto pequeno em cachos; ussombo árvore cujos frutos pendiam em cachos; tetembula, do tamanho de um berlinde, de côr branca, e o iolo de um arbusto com 30 a 50 centímetros, do tamanho de um limão, semelhante à pinha, de côr amarela, bastante doce; lomuínho árvore média, ou em arbustos, com o fruto semelhante a um berlinde verde claro, era muito aromático, adstrigente e matava a sede. Com o lomuínho fabricava-se um bom quimbombo (aguardente).
Depois desta breve descrição das principais frutas das savanas do planalto central, ficámos a fazer uma ideia da riquíssima flora angolana. O que descrevemos abarca apenas a área referente ao Planalto Central. Em outras regiões existem mais variedades de frutas silvestres, que seria fastidioso descrevê-las. O farmaceutico Sezinando Marques que acompanhou Henrique de Carvalho na viagem às Lundas em 1890 deixou um alentado volume sobre a flora daquelas regiões.
24.-As abelhas.São milhares de plantas frutíferas cuja flores são polinizadas pelas abelhas. Angola era uma das áreas mundiais com mais abelhas, conhecidas pelo seu intenso labor. Bastava pôr uma colmeia num ponto alto e logo de seguida era ocupada por um enxame. Por isso Angola foi o primeiro produtor mundial de cera. O padrão mundial da cera, no mercado de Londres era a Cera Benguela.
O trabalho das abelhas africanas foi reconhecido mundialmente ao ponto de as teram levado para outros continentes onde não só apresentam trabalho, como também dão trabalho àqueles povos: não são nada meigas e ferram por motivos insignificantes, basta uma pessoa mexer-se. Em Angola era vulgar assistir-se à passagem de um enxame e à consequente fuga das pessoas. Vários desafios de futebol tiveram que ser interrompidos, temporariamente, devido às abelhas. Talvez elas ficassem excitadas por verem duas dezenas de pessoas correndo atrás de uma bola.
Ficou lendária uma procissão em Sá da Bandeira que foi desbaratada por dois enxames de abelhas. Com todo o respeito que me merecem todas as cerimónias religiosas, mas o caso foi hilariante. Dois enxames de abelhas huilanas andavam à procura de casa. E encontraram-na: dentro de um dos sinos da catedral de Sá da Bandeira. Nesse dia realizava-se uma procissão solene. Quando esta vinha saindo para a rua começaram a ecoar os sinos e sucedeu o previsível: os enxames despencaram da torre e “esborracharam-se” no cimento à saída da catedral. Para piorar estava muito fumo de incenso no ar. E, para piorar mais, as pessoas entraram em pânico o que deixou as abelhas furiosíssimas. Difundiram-se em todas as direcções, não poupando ninguém, ferravam à esquerda e direita, em baixo e em cima, não escolhendo situações sociais, quer fosse o bispo, ou o governador, ou o juiz da comarca ou, até, o comandante militar. A procissão ainda chegou a estar totalmente desenvolvida, segundo a liturgia do acto. A procissão ainda andou uns metros, já sob forte ataque “dos caças apícolas”, mas as pessoas ainda se defendiam conforme podiam, os estudantes com a capa que ostentavam, as freiras e os padres com as suas vestes. Mas as abelhas africanas são, no dizer dos brasileiros, enfézadas, ou seja irritadiças e, também, obstinadas e raçudas. Se houve um lado que quebrou foi o da procissão. Debandou quase tudo, em todas as direcções. Houve algumas excepções que pagaram caro a teimosia (e heroicidade), uma delas foi o representante do bispo que trazia a custódia e que ficou irreconhecível. A procissão reorganizou-se, uma horas depois. Muitas pessoas seriamente picadas, teimaram em regressar, com as caras inchadas. Foi um espectáculo hilariante.