Extrapolando para o resto do país observa-se que Angola em 1973 apresentava estruturas urbanas modernas, em que sobresssaiam a organização administrativa e financeira, a boa rede de estradas asfaltadas, os eficientes caminhos de ferro, a estrutura de ensino ao nível de povoação, a permanente vigilância dos recursos naturais, um bom estado sanitário e um cadastro organizado de excepcional premência nos tempos actuais de ordenamento e regularização fundiárias. Citando o insuspeito geógrafo Orlando Ribeiro(182):«A arrumação urbana de Angola podia-se considerar razoável à escala do imenso território e da baixa densidade da população». Esta arrumação tinha apenas 50 anos.
Havia tudo para singrar, como independente, rumo a um futuro de progresso e com aspirações a ser o primeiro país de África em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
Podem perguntar: e, então a África do Sul? Angola tem muito menor densidade demográfica, tem petróleo e tem maiores recursos hídricos e energéticos. Em termos de século 21, o “século da água”, o país é excepcionalmente rico. Além de já o ser ainda em plena “era petrolífera”.
Vejamos o que sucedeu. É justo adiantar que a geopolítica mundial também contribuiu, e muito, para o colapso total da promissora Angola.Mas não foi a única culpada.A União Soviética, que mal adivinhava que iria morrer de morte súbita nos princípios dos anos 90, alimentava grandes esperanças em ocupar o lugar que a Inglaterra tinha ocupado no século 19 e metade do século 20.
Os Estados Unidos não queriam perder a hegemonia mundial, apesar de estarem desanimados e envergonhados com o desfecho da guerra do Vietname. Era muito difícil para Portugal manter o “status quo” colonial, como tinha conseguido em grande parte do século 20. E era ainda mais difícil manter uma certa influência em Angola, logo que esta obtivesse a sua independência. Portugal não era uma potência económica e estava complexado com o colonialismo desenvolvido ao longo do século 20. A União Soviética convenceu-se que ia ficar em Angola, ocupando o lugar que os portugueses detiveram por mais de quatro séculos. Ilusão! A União Soviética era um modelo elaborado de colonialismo, querendo aparentar o contrário..
Mas não foi a geopolítica mundial a única culpada, repetimos, do descalabro que se instalou em Angola. A geopolítica é a desculpa dos que nada fizeram para defender os angolanos, humildes cidadãos cuja única ocupação era o trabalho no dia a dia; é a desculpa para os ineptos que se querem refugiar no determinismo. Se o país(Angola) tivesse estruturas culturais, financeiras, jurídicas, militares, diplomáticas e políticas, tão boas como as administrativas, as económicas, as de ensino (infelizmente com um injustificável atraso), de saúde, de comunicações (também com atraso) e outras, talvez tivesse apresentado resistências internas às investidas das duas potências mundiais.
Resumindo: se tivesse quadros angolanos preparados, se tivesse uma habitualidade de eleições e uma cultura de tolerância , ofereceria outra resistência às multinacionais que se queriam instalar. Elas instalar-se-iam, não vamos imaginar um quadro irrealista de obstrução ao grande capital. Só a esquerda vesga é que imagina um país sem multinacionais. Igual a Cuba e à Coreia do Norte. Como imaginaram, com elevada dose de ingenuidade e maior ainda de ignorância, os militares que derrubaram Caetano.
Mas infelizmente Angola não tinha estruturas humanas no topo , nem tinha a mínima tradição democrática de eleições para resistir a um capitalismo selvagem. Tudo estava e girava em mãos metropolitanas submetidas, ainda por cima, a uma ditadura impenetrável e avessa a quaisquer mudanças. O povo angolano estava mergulhado em um absoluto e impenetrável nevoeiro político onde qualquer oportunista encontraria campo para militâncias. Até os chamados “civilizados” detinham um analfabetismo político de proporções confrangedoras.
Vale a pena fazer-se uma retrospectiva das doenças em Angola, tanto mais que é um assunto que praticamente ocupa hoje sempre o seu espaço nos jornais e na TV, infelizmente pela negativa. As doenças foram, em séculos anteriores, um dos principais obstáculos à entrada da modernidade. Elas ceifavam, abruptamente, os europeus que se arriscavam a viver em Angola.
Até ao aparecimento do DDT em 1945 os mosquitos eram os eternos micro-companheiros em todas as casas. Portadores da malária (ou paludismo) atacavam de noite. Na verdade só atacava a fêmea que precisa da hemoglobina do sangue para poder alimentar as larvas. Antes de se ter conhecimento sobre o ciclo evolutivo do Plasmodium, de que o mosquito é um dos vectores, sendo o ser humano ou quaisquer mamíferos, o outro vector, e ainda não se ter descoberto o quinino, a mortandade causada pela malária atingiu números de hecatombe. Neste livro referimos a letalidade em S.Tomé, em Benguela e em menor escala em Luanda.
Dizia-se, com uma certa lógica, que só eram angolanos aqueles que partilhavam os mosquitos.
A fêmea do mosquito, conhecido no Brasil como muriçoca, põe os ovos em águas estagnadas de onde sairão as larvas que se transformarão em insecto perfeito com asas, é a fase “aeronáutica”. É neste estágio que saem as “esquadrilhas nocturnas” em busca de sangue fresco.
A secagem de pântanos, através de eucaliptos, o saneamento das cidades com a eliminação de quaisquer focos de água estagnadas, o uso de mosquiteiros e, posteriormente de repelentes, e o aparecimento do DDT transformaram o paludismo numa má recordação, em meados da década de 50. Deve ressaltar-se que o quinino atenuou, bastante, a letalidade da malária. Mas este medicamento, de triste memória, deixa sequelas para o resto da vida. Uma delas é a surdez na velhice!
Mas o grande mérito da erradicação da malária deve-se às severas medidas de profilaxia, complementadas com as aplicações de DDT. Os delegados de saúde e os médicos de Angola, secundados pelos administrativos, eram implacáveis nas medidas de saneamento. Foi um bom trabalho dos médicos e dos administrativos para a eliminação do paludismo, O maior amigo do mosquito, transmissor da malária, é um pneu velho. É indestrutível, é quente e não se consegue tirar, com facilidade, a água do seu interior. É uma luxuosa maternidade de mosquitos.
Até meados da década de 50 o quinino ou quina fazia parte da vida quotidiana de todos os angolanos. Era tomado em drageias (comprimidos) e em injecções. Umas e outras venha o Diabo e escolha. As drageias eram em cru, não tinham qualquer revestimento, se tocassem na língua e boca a sensação era única. Deve ser a substância mais amarga que existe. Com as injecções era pior, embora fossem de maior e rápido valor curativo. Eram dolorosíssimas e, às vezes, agravavam-se ou seja não eram absorvidas pela massa muscular e formavam um abcesso que, depois, tinha que ser lancetado e levar um dreno durante umas semanas.
Uma doença, quase sempre fatal, era a biliosa. Responsável por milhares de mortos era atribuida a uma forma terminal do paludismo. Uns atribuíam à própria degeneração do fígado e dos rins provocada pelo quinino em excesso. Uma outra teoria afirmava que era uma forma diferente da febre amarela. A doença começava pelos habituais febrões, acima de 40º C, com as urinas acastanhadas. Quando se chegava à fase de urinar sangue, era o fim. Até à década de 50 o número de óbitos era tristemente grande. Durante o meu tempo de escola primária e de liceu morreram mais de 10 alunos, nas turmas que eu frequentei, vitimados por biliosa. Na Mocidade Portuguesa a quina ( três soldadinhos- lusitos- à frente, e dois atrás, deixando vago o lugar do meio, como a quina dos dados) era a unidade fundamental da ordem unida. Nós dizíamos que na sena tinha morrido um lusito. Por isso se chamava quina, cujo nome talvez afugentasse o paludismo. Nós marchávamos em quina.
Um bichinho, que nos moía a paciência era a universal barata. Só que as de Angola devem ser as mais inteligentes do globo. Elas auto-programaram estratégias de defesa e fuga como eu não vi em outras terras por onde passei. O melhor insecticida para as baratas continua a ser o chinelo, porque não agride o meio ambiente, embora agrida a barata. Mas o ataque à chinelada exige muita concentração, boa forma física e estômago forte, porque não é agradável ver-se a massa esmigalhada de uma barata.
As baratas angolanas tinham táticas de defesa surpreendentes. Fugiam em zig-zags desconcertantes, faziam paradas e mudanças de direcção mais rápidas do que o Eusébio nos seus gloriosos e inesquecíveis dias, e acolhiam-se, quando não conseguiam um bom abrigo, nos cantos das casas onde convergem três arestas. É impossível matá-las com uma chinelada, talvez se consiga matar com os modernos sapatos pontudos. Mas exige muita pontaria.
As fábricas de insecticidas apresentaram uma arma secreta, por volta de 1950, que provocou uma devastação no mundo das baratas. Era o célebre Flit, o DDT líquido que se espalhava com uma bomba de pulverização, ainda longe dos actuais sprays. O Flit apareceu no Brasil com um anúncio onde mostravam uma dona de casa com um chinelo na mão e uma legenda por baixo: não faça isso D.Judite, use Flit. Foi uma hecatombe inicial mas, uns anos depois, as baratas adquiriram resistência. Dizia-se, por piada, que elas se alimentavam, e engordavam, com funje de farinha (pó) de DDT.
A bitacaia, matacanha, ou bicho de pé como é conhecida no Brasil, ou pulex penetrans como é conhecida pela ciência, foi outro parasita que fazia parte do dia a dia de Angola, até meados da década de 50. Medidas de profilaxia (chão cimentado e creolina) e posteriormente o DDT praticamente acabaram com este indesejável bichinho.
Supõe-se que a bitacaia entrou em Angola, via Brasil, em séculos anteriores ao século 19, e dali propagou-se para toda a África, até Zanzibar, levada pelas caravanas de escravos. No Brasil a bitacaia ou matacanha é conhecida por bicho de pé. Os africanos não se aperceberam do perigo nos primeiros tempos de ignorância. A bitacaia, um pequeno ponto preto quando penetra na pele, nas mãos e nos pés junto às unhas, começa por provocar uma agradável comichão. É o seu primeiro e último aviso. A pessoa escolhida pela pulga, mas que já esteja tarimbada, sabe logo que é uma bitacaia e imediatamente trata de a tirar. Desinfectava-se o local com alcool, na verdade lavava-se apenas, porque o alcool nada desinfecta. O meu pai uma vez expunha ao Dr.Strangway as maravilhas do alcool como desinfectante. Comentário do distinto médico: “alcool é bom, mas bebido”. Depois procedia-se à extracção da bitacaia com um alfinete de segurança, grande, previamente passado em uma chama. A extracção era uma operação rápida para quem sabia, e ainda tinha bons olhos. A pulga vinha inteira na ponta do alfinete que era levada a uma chama. Um estalido e acabou a pulga . Depois nova desinfecção com alcool ou tintura de iodo. E gritos, se fosse extraído um saco.
Se a bitacaia não fosse extraída, em dois dias começava a formar uma colónia (saco), que em menos de uma semana ficava com o tamanho de uma ervilha sem já provocar comichão, mas com o aspecto de uma ferida infectada. Depois “explodia” em pústula. O saco, um verdadeiro super mercado de infecções (tétano e septicemia), era extraído também com um alfinete, mas com muito cuidado para não rebentar.
Os efeitos da bitacaia foram devastadores porque os africanos nada sabiam sobre ela e, no panorama tenebroso da escravatura, ninguém os elucidava. John Reader (175) cita uma observação de um explorador alemão Oscar Baumann em 1894: « Vimos pessoas em Uzinza (actual Tanzânia) cujos membros estavam desfeitos. Aldeias inteiras têm morrido devido a esta moléstia». Henrique de Carvalho(48) deixou escrito que« na estrada de Dombe ao Cuio em 1876 registou-se uma epidemia de pulex penetrans (bitacaia) que causou a morte a mais de 1 000 pessoas e afugentou muita gente daquela região».
È curioso transcrever o que Livingstone escreveu (128), a respeito da bitacaia ( que ele denomina tampan como era conhecida em Zanzibar), quando passou em Luanda em 1854: «varia de uma cabeça de alfinete até um grão de ervilha. Logo que você é mordido pelo tampan, você sente uma dor ardente misturada com comichão que invade toda a perna; logo que o veneno chega ao abdomen causa vómitos e diarreia com violência; quando não há diarreia há febre como eu senti em Tete onde fui mordido mais tarde; soube de um Português inteligente que morreu após a febre. A solicitude de meus amigos de Tete manifestada em relação aos meus Zambezianos, para os preservarem dos tampans, que são comuns em quase todos os povoados, prova o terror que lhes inspira este insecto; quanto a mim, não deixei de sofrer durante oito dias com uma comichão bastante activa na parte mordida».
O folclore de Angola contava que um funcionário, ao embarcar de licença a Portugal, foi “contemplado” com uma bitacaia. Resolveu levá-la até Portugal, para mostrar aos amigos uma “fera de África”. Morreu, durante a viagem, com tétano.
No Brasil um vaqueiro diz para outro: as três melhores coisas da vida são dinheiro, muié e bicho de pé. Uai, responde-lhe o companheiro porquê bicho de pé? Uai se não tivé o bicho de pé, p`ra quê muié?
21.-As doenças. A melhoria das habitações contribuiu bastante para a erradicação da bitacaia e de outras doenças. Quando os caminhos de ferro penetraram no interior de Angola, complementados logo a seguir com o automóvel, ficou viável o transporte de cargas pesadas.O cimento entrou em Angola e passou a pavimentar todo o interior das casas, aliás tornou-se obrigatório, no segundo consulado de Norton de Matos. Foi um duro golpe nas bitacaias, mas elas ainda duraram uns anos até à chegada do DDT. As bitacaias apareciam, em grande profusão, no milho a granel. Quando começou a ser expurgado (matança de parasitas com tetracloreto de carbono em câmaras herméticas) desapareceram quase por completo.
Os oxiuros são minúsculos vermes intestinais que vivem no intestino grosso, mais propriamente no ceco dos seres humanos. Durante a noite as fêmeas ( 10 mm) alojam-se no ânus, onde já se encontram os machos (3 mm) para a desova. Isto provoca coceira e profunda irritação no hospedeiro. A transmissão é feita por infestação e através das fezes. A erradicação da “doença” faz-se através de medidas rigorosa de higiene ( banhos diários de chuveiro) e na administração de vermífugos.
Em Angola, onde as condições de higiene no século 19 e primeiros anos do século 20 eram deploráveis, esta “doença” atingia números de epidemia e casos de extrema gravidade. Silva Porto descreveu, com minúcia, a oxiuríase ou maculo como era conhecida nos planaltos de Angola. Capelo e Ivens resgataram um adolescente, escravizado por uma quibuca (caravana só de africanos), que estava a definhar com o maculo.
Esta doença desapareceu de Angola graças às medidas de higiene e de profilaxia e aos potentes vermífugos que apareceram logo a seguir à guerra 39/45. Uma outra medida, que contribuiu para a quase erradicação da doença, foi a obrigatoriedade de cimentar o interior das residências, facilitando a “creolinagem” do chão. O facto de ser cada vez maior o número de gente calçada talvez tenha também contribuido para o decréscimo da doença.
A febre das mabatas era uma doença temida em Angola porque era de difícil cura e provocava febres altas, recorrentes. O agente da doença era uma bactéria ou espiroqueta transmitida através de uma carraça. Esta agarrava-se aos mamíferos e tinha o seu habitat em antigas palhoças de adobe ou barro chapinhado em paus ( pau a pique). Existem centenas de variedades de carraças e de bactéria da mesma estirpe espalhadas por todo o Mundo. O agente em Angola era o Spirochaeta dutonni, observado em 1906. O vector era uma carraça o Ornithodorus Moubata e, daí, o seu nome mabata. A febre das mabatas era semelhante aos ataques da malária e, quando não era diagnosticada convenientemente, era tratada com quinino. Em Angola esta doença era particularmente grave.
Fig 11 Vector da febre das mabatas Ornithodorus Moubata(vista de cima e de baixo) uma carraça cuja fêmea se alimenta do sangue dos mamíferos, transmitindo uma bactéria que provoca febres recorrentes , altíssimas. Existia em casas abandonadas, de barro cobertas de colmo(capim). Norton de Matos incentivou a instalação de dezenas de cerâmicas que impulsionaram a construção de casas de tijolo, cobertas com telhas e chão cimentado. O aparecimento do DDt foi o golpe mortal na febre das mabatas, conhecida nos Estados Unidos da América como Mal de Lyme.
Havia tudo para singrar, como independente, rumo a um futuro de progresso e com aspirações a ser o primeiro país de África em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
Podem perguntar: e, então a África do Sul? Angola tem muito menor densidade demográfica, tem petróleo e tem maiores recursos hídricos e energéticos. Em termos de século 21, o “século da água”, o país é excepcionalmente rico. Além de já o ser ainda em plena “era petrolífera”.
Vejamos o que sucedeu. É justo adiantar que a geopolítica mundial também contribuiu, e muito, para o colapso total da promissora Angola.Mas não foi a única culpada.A União Soviética, que mal adivinhava que iria morrer de morte súbita nos princípios dos anos 90, alimentava grandes esperanças em ocupar o lugar que a Inglaterra tinha ocupado no século 19 e metade do século 20.
Os Estados Unidos não queriam perder a hegemonia mundial, apesar de estarem desanimados e envergonhados com o desfecho da guerra do Vietname. Era muito difícil para Portugal manter o “status quo” colonial, como tinha conseguido em grande parte do século 20. E era ainda mais difícil manter uma certa influência em Angola, logo que esta obtivesse a sua independência. Portugal não era uma potência económica e estava complexado com o colonialismo desenvolvido ao longo do século 20. A União Soviética convenceu-se que ia ficar em Angola, ocupando o lugar que os portugueses detiveram por mais de quatro séculos. Ilusão! A União Soviética era um modelo elaborado de colonialismo, querendo aparentar o contrário..
Mas não foi a geopolítica mundial a única culpada, repetimos, do descalabro que se instalou em Angola. A geopolítica é a desculpa dos que nada fizeram para defender os angolanos, humildes cidadãos cuja única ocupação era o trabalho no dia a dia; é a desculpa para os ineptos que se querem refugiar no determinismo. Se o país(Angola) tivesse estruturas culturais, financeiras, jurídicas, militares, diplomáticas e políticas, tão boas como as administrativas, as económicas, as de ensino (infelizmente com um injustificável atraso), de saúde, de comunicações (também com atraso) e outras, talvez tivesse apresentado resistências internas às investidas das duas potências mundiais.
Resumindo: se tivesse quadros angolanos preparados, se tivesse uma habitualidade de eleições e uma cultura de tolerância , ofereceria outra resistência às multinacionais que se queriam instalar. Elas instalar-se-iam, não vamos imaginar um quadro irrealista de obstrução ao grande capital. Só a esquerda vesga é que imagina um país sem multinacionais. Igual a Cuba e à Coreia do Norte. Como imaginaram, com elevada dose de ingenuidade e maior ainda de ignorância, os militares que derrubaram Caetano.
Mas infelizmente Angola não tinha estruturas humanas no topo , nem tinha a mínima tradição democrática de eleições para resistir a um capitalismo selvagem. Tudo estava e girava em mãos metropolitanas submetidas, ainda por cima, a uma ditadura impenetrável e avessa a quaisquer mudanças. O povo angolano estava mergulhado em um absoluto e impenetrável nevoeiro político onde qualquer oportunista encontraria campo para militâncias. Até os chamados “civilizados” detinham um analfabetismo político de proporções confrangedoras.
Vale a pena fazer-se uma retrospectiva das doenças em Angola, tanto mais que é um assunto que praticamente ocupa hoje sempre o seu espaço nos jornais e na TV, infelizmente pela negativa. As doenças foram, em séculos anteriores, um dos principais obstáculos à entrada da modernidade. Elas ceifavam, abruptamente, os europeus que se arriscavam a viver em Angola.
Até ao aparecimento do DDT em 1945 os mosquitos eram os eternos micro-companheiros em todas as casas. Portadores da malária (ou paludismo) atacavam de noite. Na verdade só atacava a fêmea que precisa da hemoglobina do sangue para poder alimentar as larvas. Antes de se ter conhecimento sobre o ciclo evolutivo do Plasmodium, de que o mosquito é um dos vectores, sendo o ser humano ou quaisquer mamíferos, o outro vector, e ainda não se ter descoberto o quinino, a mortandade causada pela malária atingiu números de hecatombe. Neste livro referimos a letalidade em S.Tomé, em Benguela e em menor escala em Luanda.
Dizia-se, com uma certa lógica, que só eram angolanos aqueles que partilhavam os mosquitos.
A fêmea do mosquito, conhecido no Brasil como muriçoca, põe os ovos em águas estagnadas de onde sairão as larvas que se transformarão em insecto perfeito com asas, é a fase “aeronáutica”. É neste estágio que saem as “esquadrilhas nocturnas” em busca de sangue fresco.
A secagem de pântanos, através de eucaliptos, o saneamento das cidades com a eliminação de quaisquer focos de água estagnadas, o uso de mosquiteiros e, posteriormente de repelentes, e o aparecimento do DDT transformaram o paludismo numa má recordação, em meados da década de 50. Deve ressaltar-se que o quinino atenuou, bastante, a letalidade da malária. Mas este medicamento, de triste memória, deixa sequelas para o resto da vida. Uma delas é a surdez na velhice!
Mas o grande mérito da erradicação da malária deve-se às severas medidas de profilaxia, complementadas com as aplicações de DDT. Os delegados de saúde e os médicos de Angola, secundados pelos administrativos, eram implacáveis nas medidas de saneamento. Foi um bom trabalho dos médicos e dos administrativos para a eliminação do paludismo, O maior amigo do mosquito, transmissor da malária, é um pneu velho. É indestrutível, é quente e não se consegue tirar, com facilidade, a água do seu interior. É uma luxuosa maternidade de mosquitos.
Até meados da década de 50 o quinino ou quina fazia parte da vida quotidiana de todos os angolanos. Era tomado em drageias (comprimidos) e em injecções. Umas e outras venha o Diabo e escolha. As drageias eram em cru, não tinham qualquer revestimento, se tocassem na língua e boca a sensação era única. Deve ser a substância mais amarga que existe. Com as injecções era pior, embora fossem de maior e rápido valor curativo. Eram dolorosíssimas e, às vezes, agravavam-se ou seja não eram absorvidas pela massa muscular e formavam um abcesso que, depois, tinha que ser lancetado e levar um dreno durante umas semanas.
Uma doença, quase sempre fatal, era a biliosa. Responsável por milhares de mortos era atribuida a uma forma terminal do paludismo. Uns atribuíam à própria degeneração do fígado e dos rins provocada pelo quinino em excesso. Uma outra teoria afirmava que era uma forma diferente da febre amarela. A doença começava pelos habituais febrões, acima de 40º C, com as urinas acastanhadas. Quando se chegava à fase de urinar sangue, era o fim. Até à década de 50 o número de óbitos era tristemente grande. Durante o meu tempo de escola primária e de liceu morreram mais de 10 alunos, nas turmas que eu frequentei, vitimados por biliosa. Na Mocidade Portuguesa a quina ( três soldadinhos- lusitos- à frente, e dois atrás, deixando vago o lugar do meio, como a quina dos dados) era a unidade fundamental da ordem unida. Nós dizíamos que na sena tinha morrido um lusito. Por isso se chamava quina, cujo nome talvez afugentasse o paludismo. Nós marchávamos em quina.
Um bichinho, que nos moía a paciência era a universal barata. Só que as de Angola devem ser as mais inteligentes do globo. Elas auto-programaram estratégias de defesa e fuga como eu não vi em outras terras por onde passei. O melhor insecticida para as baratas continua a ser o chinelo, porque não agride o meio ambiente, embora agrida a barata. Mas o ataque à chinelada exige muita concentração, boa forma física e estômago forte, porque não é agradável ver-se a massa esmigalhada de uma barata.
As baratas angolanas tinham táticas de defesa surpreendentes. Fugiam em zig-zags desconcertantes, faziam paradas e mudanças de direcção mais rápidas do que o Eusébio nos seus gloriosos e inesquecíveis dias, e acolhiam-se, quando não conseguiam um bom abrigo, nos cantos das casas onde convergem três arestas. É impossível matá-las com uma chinelada, talvez se consiga matar com os modernos sapatos pontudos. Mas exige muita pontaria.
As fábricas de insecticidas apresentaram uma arma secreta, por volta de 1950, que provocou uma devastação no mundo das baratas. Era o célebre Flit, o DDT líquido que se espalhava com uma bomba de pulverização, ainda longe dos actuais sprays. O Flit apareceu no Brasil com um anúncio onde mostravam uma dona de casa com um chinelo na mão e uma legenda por baixo: não faça isso D.Judite, use Flit. Foi uma hecatombe inicial mas, uns anos depois, as baratas adquiriram resistência. Dizia-se, por piada, que elas se alimentavam, e engordavam, com funje de farinha (pó) de DDT.
A bitacaia, matacanha, ou bicho de pé como é conhecida no Brasil, ou pulex penetrans como é conhecida pela ciência, foi outro parasita que fazia parte do dia a dia de Angola, até meados da década de 50. Medidas de profilaxia (chão cimentado e creolina) e posteriormente o DDT praticamente acabaram com este indesejável bichinho.
Supõe-se que a bitacaia entrou em Angola, via Brasil, em séculos anteriores ao século 19, e dali propagou-se para toda a África, até Zanzibar, levada pelas caravanas de escravos. No Brasil a bitacaia ou matacanha é conhecida por bicho de pé. Os africanos não se aperceberam do perigo nos primeiros tempos de ignorância. A bitacaia, um pequeno ponto preto quando penetra na pele, nas mãos e nos pés junto às unhas, começa por provocar uma agradável comichão. É o seu primeiro e último aviso. A pessoa escolhida pela pulga, mas que já esteja tarimbada, sabe logo que é uma bitacaia e imediatamente trata de a tirar. Desinfectava-se o local com alcool, na verdade lavava-se apenas, porque o alcool nada desinfecta. O meu pai uma vez expunha ao Dr.Strangway as maravilhas do alcool como desinfectante. Comentário do distinto médico: “alcool é bom, mas bebido”. Depois procedia-se à extracção da bitacaia com um alfinete de segurança, grande, previamente passado em uma chama. A extracção era uma operação rápida para quem sabia, e ainda tinha bons olhos. A pulga vinha inteira na ponta do alfinete que era levada a uma chama. Um estalido e acabou a pulga . Depois nova desinfecção com alcool ou tintura de iodo. E gritos, se fosse extraído um saco.
Se a bitacaia não fosse extraída, em dois dias começava a formar uma colónia (saco), que em menos de uma semana ficava com o tamanho de uma ervilha sem já provocar comichão, mas com o aspecto de uma ferida infectada. Depois “explodia” em pústula. O saco, um verdadeiro super mercado de infecções (tétano e septicemia), era extraído também com um alfinete, mas com muito cuidado para não rebentar.
Os efeitos da bitacaia foram devastadores porque os africanos nada sabiam sobre ela e, no panorama tenebroso da escravatura, ninguém os elucidava. John Reader (175) cita uma observação de um explorador alemão Oscar Baumann em 1894: « Vimos pessoas em Uzinza (actual Tanzânia) cujos membros estavam desfeitos. Aldeias inteiras têm morrido devido a esta moléstia». Henrique de Carvalho(48) deixou escrito que« na estrada de Dombe ao Cuio em 1876 registou-se uma epidemia de pulex penetrans (bitacaia) que causou a morte a mais de 1 000 pessoas e afugentou muita gente daquela região».
È curioso transcrever o que Livingstone escreveu (128), a respeito da bitacaia ( que ele denomina tampan como era conhecida em Zanzibar), quando passou em Luanda em 1854: «varia de uma cabeça de alfinete até um grão de ervilha. Logo que você é mordido pelo tampan, você sente uma dor ardente misturada com comichão que invade toda a perna; logo que o veneno chega ao abdomen causa vómitos e diarreia com violência; quando não há diarreia há febre como eu senti em Tete onde fui mordido mais tarde; soube de um Português inteligente que morreu após a febre. A solicitude de meus amigos de Tete manifestada em relação aos meus Zambezianos, para os preservarem dos tampans, que são comuns em quase todos os povoados, prova o terror que lhes inspira este insecto; quanto a mim, não deixei de sofrer durante oito dias com uma comichão bastante activa na parte mordida».
O folclore de Angola contava que um funcionário, ao embarcar de licença a Portugal, foi “contemplado” com uma bitacaia. Resolveu levá-la até Portugal, para mostrar aos amigos uma “fera de África”. Morreu, durante a viagem, com tétano.
No Brasil um vaqueiro diz para outro: as três melhores coisas da vida são dinheiro, muié e bicho de pé. Uai, responde-lhe o companheiro porquê bicho de pé? Uai se não tivé o bicho de pé, p`ra quê muié?
21.-As doenças. A melhoria das habitações contribuiu bastante para a erradicação da bitacaia e de outras doenças. Quando os caminhos de ferro penetraram no interior de Angola, complementados logo a seguir com o automóvel, ficou viável o transporte de cargas pesadas.O cimento entrou em Angola e passou a pavimentar todo o interior das casas, aliás tornou-se obrigatório, no segundo consulado de Norton de Matos. Foi um duro golpe nas bitacaias, mas elas ainda duraram uns anos até à chegada do DDT. As bitacaias apareciam, em grande profusão, no milho a granel. Quando começou a ser expurgado (matança de parasitas com tetracloreto de carbono em câmaras herméticas) desapareceram quase por completo.
Os oxiuros são minúsculos vermes intestinais que vivem no intestino grosso, mais propriamente no ceco dos seres humanos. Durante a noite as fêmeas ( 10 mm) alojam-se no ânus, onde já se encontram os machos (3 mm) para a desova. Isto provoca coceira e profunda irritação no hospedeiro. A transmissão é feita por infestação e através das fezes. A erradicação da “doença” faz-se através de medidas rigorosa de higiene ( banhos diários de chuveiro) e na administração de vermífugos.
Em Angola, onde as condições de higiene no século 19 e primeiros anos do século 20 eram deploráveis, esta “doença” atingia números de epidemia e casos de extrema gravidade. Silva Porto descreveu, com minúcia, a oxiuríase ou maculo como era conhecida nos planaltos de Angola. Capelo e Ivens resgataram um adolescente, escravizado por uma quibuca (caravana só de africanos), que estava a definhar com o maculo.
Esta doença desapareceu de Angola graças às medidas de higiene e de profilaxia e aos potentes vermífugos que apareceram logo a seguir à guerra 39/45. Uma outra medida, que contribuiu para a quase erradicação da doença, foi a obrigatoriedade de cimentar o interior das residências, facilitando a “creolinagem” do chão. O facto de ser cada vez maior o número de gente calçada talvez tenha também contribuido para o decréscimo da doença.
A febre das mabatas era uma doença temida em Angola porque era de difícil cura e provocava febres altas, recorrentes. O agente da doença era uma bactéria ou espiroqueta transmitida através de uma carraça. Esta agarrava-se aos mamíferos e tinha o seu habitat em antigas palhoças de adobe ou barro chapinhado em paus ( pau a pique). Existem centenas de variedades de carraças e de bactéria da mesma estirpe espalhadas por todo o Mundo. O agente em Angola era o Spirochaeta dutonni, observado em 1906. O vector era uma carraça o Ornithodorus Moubata e, daí, o seu nome mabata. A febre das mabatas era semelhante aos ataques da malária e, quando não era diagnosticada convenientemente, era tratada com quinino. Em Angola esta doença era particularmente grave.
Fig 11 Vector da febre das mabatas Ornithodorus Moubata(vista de cima e de baixo) uma carraça cuja fêmea se alimenta do sangue dos mamíferos, transmitindo uma bactéria que provoca febres recorrentes , altíssimas. Existia em casas abandonadas, de barro cobertas de colmo(capim). Norton de Matos incentivou a instalação de dezenas de cerâmicas que impulsionaram a construção de casas de tijolo, cobertas com telhas e chão cimentado. O aparecimento do DDt foi o golpe mortal na febre das mabatas, conhecida nos Estados Unidos da América como Mal de Lyme.
1 comentário:
A febre da mabata não desapreceu. Vivo em Angoa e recentemente fui infectada com esta doença...
Obrigada pelos seus textos,
Patrícia Patrício
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