Em um ensaio anterior estabelecemos a diferença entre colonialismo e colonização. E exumámos os esqueletos do colonialismo. Agora vamos analisar os esqueletos da colonização: não estão em armários, como os do colonialismo, mas espalham-se por toda a Angola, sob o olhar desconsolado dos angolanos que sonharam sempre com uma melhoria que, infelizmente, tarda em aparecer. Por que perdeu Angola, em três dezenas de anos, todo um património em que se empenharam milhares de pessoas?“O que é importante é a história. Porque quando todos nós formos pó,- dentes e pedaços de pele- quando estivermos a dançar com os nossos próprios esqueletos- as nossas palavras poderão ser tudo o que restará de nós.” Alexandra Fuller em Scribbling the Cat-Travels with an african soldier.London 2005 Picador. (edição em inglês)
Ressalvando alguns aspectos negativos dos colonos, abordados em anteriores artigo(Os ossos do colonialismo) (A utopia de um novo Brasil em África), a colonização dos portugueses foi positiva, decorridos mais de 30 anos sobre o seu fim, com a poeira histórica já muito assente. Sobre os colonos, em uma manobra hábil da descolonização feita pelos militares portugueses , foram descarregados todos os anátemas do colonialismo. Mas este foi idealizado, normatizado e dirigido, sempre, sem um minuto de descanso, por Lisboa. Para os colonos foi descarregado o fardo desse colonialismo oco e antiquado, totalmente gizado e dirigido por Lisboa, embora eles não saiam isentos de culpa, por terem mantido uma passividade colaborante e de se terem aproveitado de leis injustas, especialmente as referentes ao trabalho compelido. Infelizmente o hábito de injustiças acaba por legitimizá-las, mas só para os que delas usufruem. Os colonos construíam, os oligarcas obstruíam, estes mentiam, aqueles acreditavam.
Foi o exército português, pela força das armas, que instituiu a soberania portuguesa em Angola. E ele viu-se obrigado a fazê-lo, pressionado por outros países europeus, sob a ameaça de “ se não queres, avanço eu”. À medida que as regiões iam sendo subjugadas, o exército consolidava a autoridade através do capitão-mor, sargentos que aceitavam permanecer em Angola. Cumpria-se, assim, o principal mandamento da Conferência de Berlim (1885): a ocupação efectiva. Mas militar, apenas. A ocupação civil só se efectivaria especialmente a partir de 1920.
Em 12 de Outubro de 1920 o major Norton de Matos tomou posse em Lisboa do cargo de Alto-Comissário de Angola. Este oficial de engenharia já tinha estado em Angola, em 1912, como Governador Geral. Esta posse foi o dealbar de uma nova era, que apelidámos de O Grande Salto, porque Norton de Matos, neste segundo governadorado, imprimiu uma tal dinâmica que transformou Angola de feitoria em colónia. A sua posse desencadeou uma onda de entusiástica emigração para Angola.
O capitão-mor que era a autoridade em uma região, logo que estivesse pacificada, deixou má fama em Angola, onde ficou conhecido quer pela violência de que se cercava, quer pelas extorsões que praticava. Norton de Matos, em 1921, acabou com esta predominância militar e instituiu o Quadro Administrativo Civil que perdurou até à independência.
O Quadro Administrativo Civil foi preenchido com pessoal formado na Escola Superior Colonial, sediada em Lisboa e por angolanos escolhidos por concursos públicos. Houve uma substancial melhoria nas relações humanas, pese embora alguns episódios desagradáveis.
Os maiores pecados do Quadro Administrativo foram o de ter colaborado com o negócio dos contratados, e o de ter exorbitado, algumas vezes, na autoridade. O contrato foi uma maneira hábil que o governo de Lisboa encontrou para se continuar a utilizar a mão de obra barata, uma atenuada reminiscência da escravidão. Dela beneficiava a oligarquia de Lisboa (detentora das grandes fazendas e de inúmeros privilégios e monopólios), mas o ónus recaía sobre os administrativos e sobre os colonos. Eram os administrativos que tinham que cumprir as ordens absurdas e iníquas, era sobre eles que recaíam todas as acrimónias das injustiças praticadas. Mas as mais valias económicas e financeiras deste mau proceder ficavam para os oligas. Que nunca deram a cara. Até na independência ficaram “assobiando para o lado”.
A parte pior do contrato sobrou para o Chefe do Posto. Dizia-se que alguns recebiam comissão por cada “contratado” que conseguissem arranjar para S.Tomé, para as fazendas do litoral de Angola, para as fazendas de café no sub-planalto, ou para as pescarias. Os donos da maioria das fazendas viviam em Lisboa, em um execrável absentismo mas com um total poder de decisão.
Corria por Angola a fama de que os administrativos da Baixa de Cassanje e da Lunda recebiam um segundo salário pago pelas ANG`s Cotonang e Diamang. Mas a figura principal, em todo este negócio, era o angariador de pessoal, detestado pela população, já por estar a esvaziar demograficamente a região,o que prejudicava a produção e consequente comércio no interior, já pelo tipo de transacção, já por alardear fartura de dinheiro aliás uma pecha típica dos portugueses quando ganham dinheiro fácil.
Como se pode classificar a actuação do Quadro Administrativo, sem cair em excessos de linguagem ou em maniqueísmos? Depois de 1974, em Portugal, não se procura a verdade, ou melhor, as verdades. Apenas o que é politicamente correcto e que não vá pôr em xeque “as conquistas do 25 de Abril”.Para ocultar o passado nada como manter, através de uma imprensa controlada e ignorante, as consagradas “verdades” definitivas e oficiais.
Angola começou a pulsar como nação, infelizmente governada superior e politicamente por um absentismo colonialista, a partir de 1920, no início do segundo consulado de Norton de Matos, com a instituição do Quadro Administrativo. Foram eles, os Administradores, os Secretários e os Chefes do Posto (estes designados, a partir de 1961, por Administradores de Posto), que instituiram o poder em Angola, foram eles que desarmaram a população, foram eles que incentivaram a agricultura de subsistência, foram eles que garantiram a paz em Angola, um bem que lá não existia desde tempos imemoriais, Foram eles que estabeleceram as fronteiras nacionais e entre províncias, foram eles que dirigiram a construção das primeiras estradas, foram eles que garantiram a circulação de pessoas e bens, por todo o país, foram eles que apoiaram fortemente as acções tendentes a erradicar ou atenuar as seculares doenças , foram eles que incentivaram e protegeram a agricultura tradicional, punindo extorsões ou roubos,foram eles que tornaram possível o entendimento entre povos diferentes.
Infelizmente houve injustiças e até alguns actos de brutalidade, que se repercutiriam até aos dias da independência, e que ficaram com o maior peso, porque foram aproveitados para as sementes da discórdia e separação. As poucas acções negativas do Quadro Administrativo, de muito menor volume do que as acções positivas, ficaram com muito maior peso para a posteridade. E para a história recente. Terão que passar muitas décadas até se reconhecer, também, o papel positivo dos administrativos. A actual Angola, nação consolidada una e próspera, não teria sido possível sem o braço vigoroso do Quadro Administrativo nos seus primórdios.
Em mais de meio século, porque a colonização só começou na década de 20, os colonos conseguiram implantar e transformar Angola nos seguintes pontos:
1.-População sem armas e portanto sem violência. Um latrocínio (assassinato para roubar) era severamente punido. Instalou-se um clima de paz e de trabalho, visíveis em poucos anos: a colónia passou a ter desafogo económico ou, para ser mais moderno nas palavras, adquiriu uma situação de sustentabilidade. A fome, com presença constante em séculos anteriores, passou a ser apenas uma má recordação.
2.-Erradicação das terríveis doenças que faziam de Angola uma das piores regiões do mundo. Há historiadores modernos que apoucam o incontestável sucesso da supressão das doenças mortíferas argumentando que”fizeram isso porque queriam trabalhadores sãos para as roças e fazendas”. É provável que isso tenha passado pela cabeça de algum governante alinhado com alguns africanistas de Lisboa. Mas o espírito em Angola, nos médicos, nos enfermeiros e em todas as pessoas que contribuiram para o enorme sucesso da erradicação de quase todas as doenças tropicais, e não só, nunca foi esse. O objectivo dos agentes de saúde em Angola, e eu conheci muitos e muitos, nunca foi o de “contribuir para a saúde dos trabalhadores das fazendas”. Foi unicamente o de orgulho profissional, de competência,de brio de generosidade e de honradez. Ninguém gosta de viver em uma terra cercado de doenças e miséria. Ninguém gosta de viajar “com os vidros fechados” numa terra de calor.
O quadro de saúde em Angola deixou um rasto de sucessos devido à abnegação, ao entusiasmo e altruísmo dos seus elementos. Podemos aqui citar grandes médicos, não só no sentido académico, mas especialmente no sentido humano. O Dr.João Pessoa, que morreu quase na miséria em Nova Lisboa, o Dr. Pinto da Fonseca, que mesmo canceroso, continuou a dirigir as brigadas da “Doença do Sono”, o Dr.Garcez Palha que gostava da profissão e que não tinha horários, o Dr.Ricou empenhado em erradicar a lepra,o dr.Strangway da Chissamba, os drs Parsons, pai e filho da Missão do Bongo etc. E, também, grandes enfermeiros, “verdadeiros médicos” quando não os havia nos bicanjos longínquos (interior), que chegaram a fazer milagres. Eles actuavam, porque gostavam da profissão, eram competentes e ambicionavam melhorar o terrível quadro clínico que existia em Angola. E conseguiram-no. Conheci enfermeiros que se deslocavam de bicicleta pessoal, paga do seu bolso, em percursos longos e difíceis, só para vacinarem populações isoladas.
3.-Um orçamento geral equilibrado, em que tudo era pago dentro dos prazos e não havia lugar para desvios de dinheiro e, muito menos, para falcatruas. Todos pagavam os impostos justos em tempo devido. Havia uma confiabilidade mútua nos negócios.
4.-Um sistema de produção e comercialização de alimentos, que tornaram o país auto sustentado. Os excedentes, cada vez maiores, eram exportados. Produção quase toda feita pelos africanos. Em todos os pontos de Angola encontravam-se os artigos de primeira necessidade, baratos e cujos preços não sofriam inflação: pão, peixe seco e em conserva, enlatados de peixe e carne, farinhas de bombó e milho, sal, azeite dem-dem, feijão, fósforos, petróleo, sabão, tintura de iodo, tintura de mercuro-cromo, creolina, resoquina e outros anti-palúdicos, aspirina, sulfamidas, bananas, cambriquites (cobertores), D.D.T. (chamado pó mata-piolhos) etc. E não eram provenientes de doações de países estrangeiros. Eram produzidos em Angola e adquiridos através do trabalho honrado dos angolanos.
Nenhum angolano estava à espera de receber doações.Nas transacções comerciais não havia intermediários ( comissários ou parceiros) parasitas. O sistema de produção de alimentos foi instituido por Norton de Matos, governador geral de Angola em 1912/1914. O país produzia em 1973 mais de 40 artigos comerciáveis, quase todos produzidos pelos camponeses africanos, ostentando uma balança comercial invejável ou, usando novamente os jargões de hoje, uma economia sustentável. Infelizmente o colonialismo metropolitano aproveitou-se das divisas relativas às exportações e mantinha os africanos, por regra, sob salários vergonhosamente baixos.
Durante a guerra de 1939-1945 houve casos escandalosos de apropriação das divisas de Angola feitas pelos colonialistas da Metrópole. Estes chegavam a ter lucros escandalosos até nos próprios transportes marítimos monopolisados! As tarifas nos barcos belgas, franceses e ingleses eram mais baratas do que nos transportes portugueses. Mas era obrigatória a utilização destes últimos!
A agricultura em Angola era difícil devida a vários factores: solos pobres, facilmente erosionáveis, pragas violentas especialmente quando se agricultavam grandes áreas contínuas, transportes deficientes, escasso poder de compra por ausência de moeda-uma manobra cavilosa dos governos de Lisboa- , ausência de crédito agrícola, doenças no pouco gado de tracção, etc.
Os solos eram pouco férteis, mas qual a explicação para o facto de a produção nativa encher todos os silos, ao longo das ferrovias e também ao longo das estradas ? A resposta tem várias componentes. Era essencialmente, uma agricultura de subsistência, tradicional, sustentável, itinerante, apoiada pelos orgâos oficiais, financiada pelos comerciantes ( com todos os atropelos que lhes são, a maioria das vezes sem razão, imputados), supervisionada pelas autoridades. Fazia-se dentro de uma economia fora de todos os parâmetros ocidentais ( capital, juros, taxa de retorno, amortizações etc. ), era uma agricultura livre ( uma das poucas liberdades que os camponeses angolanos usufruiram). O sucesso da produção nativa apoiava-se em cinco cês: camponeses, comerciantes, chefes do posto, camionistas e capatazes agrícolas dos serviços oficiais.
Era uma agricultura de subsistência porque garantia aos camponeses as condições mínimas de alimentação e aquisição de bens primários. As fubas de mandioca e milho, o feijão, a batata doce, o arroz, juntamente com peixe seco do litoral ( muito barato) ou alguma carne que compravam ,ou obtinham da caça, complementados com azeite de palma, eram a base da alimentaçã. O excedente era trocado por comida (o pão era vulgar) roupa e outros artigos, nas lojas dos comerciantes do mato ou na cidade, se estivessem próximas. As sementes eram distribuídas pelos orgãos oficiais, Junta dos Cereais ou Serviços de Agricultura e Florestas que também ofereciam ajuda técnica. Eram os únicos subsídios do Estado, mas não eram em dinheiro. Nada de subsídios!
As sementes recebiam um corante, que os orgãos que as distribuíam diziam ser venenoso, a fim de evitar que fossem utilizadas na alimentação. Os serviços oficiais faziam qualquer desinfecção, se fossse necessário, e combatiam as pragas muito frequentes. Muitas vezes os comerciantes vendiam sementes, às vezes ofereciam-nas, e comprometiam-se a comprar as produções, foi assim que se difundiram, rapidamente, culturas de outros géneros. Géneros exóticos como por exemplo os morangos (aos milhares) grão de bico, produtos hortícolas, até espargos, frutas de clima temperado, etc.
Fig1 - Silos de milho na Caála. Esta cidade de invulgar vigor económico, apesar de não ser capital de distrito e situar-se muito próximo de Nova Lisboa (Huambo), era conhecida pelo epíteto de “Rainha do milho”.Um engenheiro húngaro, que conheci no Brasil, e que tinha trabalhado em Angola logo após a independência, perguntou-me, espantado, se os silos que bordejavam as estações do Caminho de Ferro de Benguela eram só para propaganda ( influência do regime comunista que vigorou na Hungria e que ele abominava do mais fundo da sua alma! ), ou se realmente ficavam repletos. Eu confirmei: ficavam repletos e nos lados restavam milhares de sacos, por excesso de produção. Era necessário construirem-se mais silos. Então, por que é que os europeus não tinham sucesso com a agricultura ? O húngaro baseava-se nos, já evidentes, insucessos dos cooperantes estrangeiros ao pretenderem implantar uma agricultura soviética. Estes cooperantes agrícolas estavam convencidos de que os solos negros de Angola eram “ Tchernozions”. Estes solos, que existem na Ucrânia, são os mais ricos do mundo.Os africanos tinham sucesso porque acumulavam séculos de experiência, uma sabedoria empírica que funcionava.
Como escreveu Isabel Castro (115) «... comerciantes, esses intermediários que dão valor ao que se produz, qualquer que seja a natureza dos bens propostos».
A propósito, o insuspeito geógrafo santomense, já falecido, Francisco Tenreiro, em 1962 escreveu, citado por Orlando Ribeiro(182) «Certamente como colono lançado pelo interior das savanas e anharas o português trouxe, como portador de civilização em expansão, muita perturbação às estruturas tradicionais nativas, o que sempre se dá quando lado a lado estão culturas diferentes, mas também transplantou elementos que revigoraram as mesma estruturas no campo da vida material ou económica, sistemas e princípios revolucionários àquelas latitudes. O tudo traduziu-se num enriquecimento do património agrário pela introdução de plantas que, se indiscutivelmente não erradicaram por completo a fome congénita daquelas civilizações, a atenuaram consideravelmente: lembro-me do milho americano, da mandioca, da jinguba e tantos outros produtos presentes, hoje, por toda a parte, na dieta fundamental dos africanos negros; instrumentos agrários, nem sempre utilizados com sabedoria, mas que promovem, quando aplicados devidamente, uma melhoria dos rendimentos da terra, como o uso da charrua ou até simplesmente da enxada e pás de cabo comprido; estimulou a utilização dos estrumes transformando uma agricultura ausente de gado em sistemas agrários mistos, etc. A outro nível, levou uma religião ecuménica- o cristianismo-, um sentido de unidade política e uma língua veicular- e se todos estes elementos não se encontram ainda hoje profundamente radicados nas estruturas nativas, permitem, no entanto, num mundo diverso física e humanamente, um certo caminhar em comum, um certo sentido colectivo, acentuado ainda por um ensino rudimentar e por uma salubridade que começa a dar os seus frutos. Acrescente-se a isto uma forma de viver que tende para a harmonia entre os homens que, embora de quando em quando submetida a desvios perigosos, não deixou de constituir até hoje um revelação original. Em síntese: o corpo de Angola existe porque existem portugueses- pretos e brancos».
Era uma agricultura itinerante e tradicional porque, como já se apontou, os solos eram pouco férteis e frágeis. Mais de três anos de culturas tornavam o solo infértil e obrigavam a ir cultivar outras áreas virgens ou áreas com muitos anos de pousio. Isso explica a grande transitoriedade dos povoados nativos, um dos motivos por que as suas casas não eram de construção definitiva, que utiliza pedra, tijolo e outros materiais mais duráveis. Por isso a grande complexidade da questão fundiária em Angola, em que os terrenos pareciam que não eram de ninguém, mas que eram reclamados quando alguém os pretendia utilizar. Uma agricultura itinerante precisa de todas as terras, nunca se sabe onde se vai abrir “ uma lavra”.
Os africanos sabiam, por experiência secular, quando uma terra já podia receber culturas. Um outro motivo desta agricultura itinerante era o de não se poderem estrumar as terras, aumentando-lhes a fertilidade, devido à falta de transportes com gado cavalar, asinino e bovino.
Mesmo quando tinham gado bovino, que sobrevivia às doenças, não se aproveitavam os estrumes porque os bois não eram estabulados de acordo com as práticas agrícolas sequentes. E não havia tradição no manejo de gado de tracção, embora já muitos camponeses lidassem, e bem, com esta melhoria.
A economia da agricultura itinerante sai fora da percepção capitalista, e muito especialmente, da desastrada economia dirigida que vigorou no império soviético e que foi implantada em Angola nos primórdios da independência. O capitalismo arroga-se o direito de entender que, fora do âmbito da competição e do lucro, ninguém pode sobreviver. Esta economia africana não visava o lucro e muito menos tinha contabilidade, era um trabalho de formiguinhas laboriosas, que enchiam os silos grão a grão, pouco se importando com o rendimento por hectare, com o capital investido ( era só o trabalho manual), com a taxa de retorno, com a amortização e com toda uma parafernália de termos que conduzem, regra geral, a uma febre de subsídios e concomitante falência, que depois o estado subsidia, ou melhor, distribui dinheiro sem controle. Eu gostaria de ver um agricultor europeu, que vive apoiado no estado, a produzir cereais em Angola, sem subsídios directos (dinheiro), como faziam os angolanos.
E sobretudo era uma agricultura sustentada. Os camponeses africanos, ao contrário do que se pensava e escrevia durante os primeiros tempos da presença europeia, tinham tecnologia, experiência, bom senso e sensibilidade para os problemas agrícolas, como foi observado por Livingstone, Cameron, Serpa Pinto, Capelo, Ivens, Artur de Paiva, Henrique de Carvalho, Paiva Couceiro e, especialmente, Norton de Matos, nos fins do século 19 e princípios do século 20. E por muitos agrónomos, nos tempos seguintes, quando adquiriam experiência local.
Raramente eu vi um insucesso entre estes camponeses. Discretos, como formiguinhas, não exigiam subsídios, não contraíam empréstimos, não exigiam indemnizações quando a natureza era adversa, não faziam manifestações, não culpavam o estado pelos insucessos, mas enchiam os silos e aumentavam as produções de ano para ano. E ainda alguns africanistas comentavam que “eles não gostam de trabalhar”. Em produção de alimentos Angola ocupava um lugar de destaque em África. Produzia para comer e exportava os excedentes. Nos finais dos anos 60, antes do grande desenvolvimento que caracterizou o Tempo Extra (1961- 1974) a colónia produziu, para exportação, 87 217 toneladas de café robusta ( 15% da produção africana), 58 571 toneladas de sisal, 117 116 toneladas de milho, 13 004 toneladas de óleo de palma, 11 789 toneladas de feijão, 3 846 toneladas de arroz além de bananas, laranjas, abacaxi, batata, mandioca, batata doce e outros géneros, muitos e muito géneros, alguns bem exóticos. Em anexo( no livro) apresentam-se números de produção, em cotejo com a África tropical.São números que confirmam o que escrevemos.
Bastava apenas um comerciante do mato fornecer as sementes, e comprometer-se na compra, e os resultados apareciam. Os comerciantes do mato davam valor a tudo o que se produzisse. Compravam todos os géneros, alguns com pouco interesse. O Bié, por exemplo, era farto de morangos, fruta pinha, nêsperas, goiabas, mangas,bananas, citrinos e produtos hortícolas introduzidos pelos comerciantes do mato. Quando as estradas já estavam asfaltadas os camponeses vendiam frutas e produtos hortícolas ao longo das estradas, um interessante comércio que estava tendo um crescimento exponencial e que iria originar a instituição de futuras feiras tradicionais e, até, ao aparecimento de novas cidades.
Em Fevereiro de 1953 em conferência no Palácio da Bolsa no Porto Marcelo Caetano, um dos ideólogos das doutrinas coloniais e colonialistas, desenvolveu o tema “O nativo como produtor”. A respeito eis o que disseram os jornais:
“Enumerou os principais géneros cultivados uns para consumo, outros para exportação, e deteve-se no estudo das características da agricultura angolana feita em pequenas lavras dispersas, que mudam de ano para ano de lugar (cultura divagante) com muita técnica primitiva, quase sem alfaias, trabalhada sobretudo pelas mulheres emquanto os homens permanecem ociosos. Não admira, pois, que a agricultura africana produza relativamente pouco e de má qualidade.
Mas se o ruralato indígena prende muitos braços para atingir um resultado medíocre, não será preferível aproveitar antes os pretos como assalariados das empresas europeias ? O problema é muito complexo e não pode apenas atender-se ao seu aspecto económico. Mas, sem dúvida, uma parte da população indígena tem de participar na produção, fornecendo trabalhadores de conta doutrem, enquadrados por europeus.”
Antes de mais, uma observação ao termo divagante que caracteriza um acto sem rumo certo ou sem objectivos, mais ao sabor do acaso. Não era assim a agricultura tradicional dos africanos. Já mencionámos que era uma agricultura itinerante, que seguia um planeamento baseado na experiência. Os solos, especialmente os do planalto central, perdiam a sua pouca fertilidade ao fim de 3 ou 4 colheitas e havia necessidade de os deixar em pousio. Escolhiam-se outros locais e a faina agrícola lá prosseguia. Os rendimentos, segundo a óptica capitalista não eram bons, mas era com eles que Angola exportava milho e muitos outros géneros. Foi com a tal “divagante e com muita técnica primitiva” e “relativamente pouco e de má qualidade” que Portugal se alimentou de milho, feijão e açucar, principalmente, durante a segunda guerra mundial. Interessante a maneira capciosa como se defende o contrato: « Mas, sem dúvida, uma parte da população indígena tem de participar na produção, fornecendo trabalhadores de conta doutrem, enquadrados por europeus.»
É bom frisar que a maioria dos colonos não tinha fazendas mas apenas “chitacas”. Uma loja era sempre necessária para suporte financeiro das chitacas que, normalmente, davam prejuízos.Eram muitas e desconhecidas as doenças que atacavam, especialmente, as espécies exóticas.
Os chefes do posto garantiam a segurança, reprimindo os roubos ou extorsões. Se não fosse a sua autoridade, infelizmente com alguns excessos, nunca teria sido possível instituir uma agricultura tão sustentável.
O sistema da produção de géneros alimentícios, já consolidado e em vias de sofrer uma segunda transformação com a introdução de pequena mecanização e tecnologias intermédias, recebeu em 1977, já com Angola independente, uma primeira cacetada com uma infeliz frase de Agostinho Neto:
«O camponês tem, em si, um gérmen de capitalista. O sonho de um camponês qual é? É ter uma grande propriedade ... para ter lucros. E o seu lucro aumenta à custa dos trabalhadores que ele assalariou. É um explorador». Discurso de Agostinho Neto em 1977, citado em “A indústria.em tempo de guerra (Angola 1975-91)” de Manuel Ennes Ferreira.
5.-Havia uma pacífica convivência entre os diversas povos que constituem a nação angolana. Comparável à que existia na antiga Jugoslávia, no tempo do marechal Tito. Se não fossem as barreiras impostas, subreptíciamente, por Lisboa, a convivência teria sido melhor, entre a comunidade europeia e a africana. Se deixassem trabalhar a natureza (miscigenação e aculturação), o resultado teria sido menos desastroso.
6.-Um sistema de ensino adaptado ao país. Vale repetir que este sistema, infelizmente, só foi adoptado no Tempo Extra, ou seja a partir de 1961. Os professores recebiam, dentro dos prazos, o respectivo salário. Era impressionante verificar-se a avidez dos africanos pelo ensino e cultura. Era raro um africano abandonar os estudos.
7.-Uma rede de estradas invejável, até em países do primeiro mundo. Voltamos a repetir que, infelizmente, só apareceu no Tempo Extra(1961-1974), mas isso não lhe tira o mérito. Todas as cidades estavam ligadas por estradas asfaltadas. Em 1973 Angola dispunha de mais de 8000 km de estradas pavimentadas. Vale ressaltar aqui a excelência da JAEA (Junta Autónoma de Estradas de Angola).
Fig 3 - Os lacetes da Leba. Um “ataque” à Escarpa Atlântica” no sul de Angola. Como já frisámos, em ensaios anteriores, o sistema orográfico do país é concordante com a linha litoral e atinge os 2000 m a escassos 200 km do mar. Por tal motivo Angola era quase inexpugnável. Esta estrada é um exemplo geográfico da tenacidade dos colonos e da excelência da engenharia angolana. Esta subida,infelizmente só concretizada nos anos 60, foi sempre uma velha aspiração dos colonos.
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