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Alguma coisa deve estar tremendamente confusa na cabeça dos socialistas e do ex-engenheiro José Sócrates. Eles não perceberam que não são nenhuma comissão liquidatária dos dinheiros e património públicos em nome dos ‘superiores interesses da economia’
Miguel Sousa Tavares
A partir do final dos anos 30, o Estado Novo lançou-se na volúpia das grandes obras públicas. Sob o comando de Duarte Pacheco, acumulando o cargo de ministro das Obras Públicas com o de presidente da Câmara de Lisboa, lançaram-se os grandes projectos emblemáticos do regime, ao estilo arquitectónico grandiloquente do fascismo italiano: a Gare Marítima de Alcântara, o Estádio Nacional, o Técnico, a ponte de Vila Franca, o aterro de Belém, destinado a preparar o terreno para o que viria a ser o culminar dessa imensa demonstração de capacidade de realização e ‘modernismo’: a Grande Exposição do Mundo Português, de 1940. Lá longe, no outro extremo da Europa, também o estalinismo se lançava nos grandes projectos megalómanos servidos por uma arquitectura monumental e esmagadora, como que destinada a mostrar aos cidadãos que eles nada eram ao pé da dimensão imensa do Estado.
Não pretendo que as grandes obras públicas dos países pobres tenham apenas uma função de propaganda dos regimes. Muitas foram e continuam a ser úteis, mas todas elas ilustram duas crenças comuns à direita e à esquerda: a crença de que para muitos males nada melhor do que poucas e grandiosas soluções, de que as obras públicas monumentais são o instrumento mais apetecível; e a crença de que o Estado é o motor da economia. Portugal conhece várias destas demonstrações, saldadas por outros tantos elefantes brancos: Sines, Cahora-Bassa, Alqueva, a Exponor, o CCB. Todos os dias pagamos a factura dessas ilusões.
Eu acredito, pelo contrário, que, para muitos males simultâneos, devem existir muitas e adequadas soluções. Parece-me fácil e barato pôr termo às condições miseráveis e degradantes que ainda se vivem em tantos hospitais públicos; parece-me fácil e barato acabar de vez com as condições de vida humilhantes de tanta gente nas grandes cidades, aproveitando os terrenos públicos, em lugar de os entregar à especulação imobiliária.
Eu acredito, pelo contrário, que, para muitos males simultâneos, devem existir muitas e adequadas soluções. Parece-me fácil e barato pôr termo às condições miseráveis e degradantes que ainda se vivem em tantos hospitais públicos; parece-me fácil e barato acabar de vez com as condições de vida humilhantes de tanta gente nas grandes cidades, aproveitando os terrenos públicos, em lugar de os entregar à especulação imobiliária.
O que me custa a entender é que se queiram gastar biliões num aeroporto novo cuja necessidade está por provar, e mais uns biliões num TGV para o qual se desconfia que não haverá utilizadores que o justifiquem, ao mesmo tempo que há gente a viver como nos subúrbios de África e a tratar da saúde em hospitais que parecem saídos da Idade Média. Custa-me a aceitar a convivência entre o luxo e a miséria, entre um país pobre e um Estado esbanjador.
Os nossos socialistas ‘modernos’ têm dois fascínios fatais: as obras públicas e os interesses privados. A simbiose que daqui resulta é a pior possível. O Estado, empenhado em mostrar grande obra a qualquer preço, contrata com os grandes interesses privados tudo e mais alguma coisa: as estradas, as telecomunicações, o ensino, a saúde, a defesa. E dá de si tudo o que tem para dar: terrenos e dinheiros públicos, património e paisagem, empreitadas e fornecimentos, concessões e direitos de toda a espécie. A confusão de funções, de papéis e de interesses entre o público e o privado que daqui resulta é total e perturbante.
Anteontem, na apresentação do TGV (e tal como já havia sucedido com a da Ota), o Governo falou, não para o país ou os seus representantes, mas para uma plateia seleccionada dos grandes clientes privados dos negócios públicos: bancos, seguradoras, construtoras, empresas de estudos, gabinetes de engenharia e escritórios de advocacia.
E o discurso foi lapidar: “Meus amigos: temos aqui 600 quilómetros de TGV a construir e dez mil milhões de euros a gastar. Cheguem-se à frente e tratem de os ganhar!”.
Dois dias antes, na Assembleia da República, o PS uniu-se como um todo para votar contra a proposta do PP, apoiada por toda a oposição, para que o estudo de uma alternativa à Ota contemplasse também aquela que é a solução que o bom-senso defende: a da chamada Portela±1. No dia seguinte, no ‘Público’, o americano do MIT Richard Neufville, uma autoridade mundial em aeroportuária, explicava por que razão a questão do aeroporto de Lisboa se resolveria melhor e infinitamente mais barato com o simples aproveitamento de uma pista já existente e a construção de infra-estruturas mínimas e eficazes para as «low-cost». Mas os deputados socialistas, representantes nominais do interesse público, não querem sequer que a solução seja considerada.
Porquê?
A resposta só pode ser uma: porque na Ota e no TGV estão em jogos muitos interesses, muitos biliões, que o Governo promove e protege e que o partido compreende.
Temos agora a questão do TGV. Das três linhas previstas - Porto/Vigo, Porto/Lisboa e Lisboa/Madrid -, apenas a Porto/Lisboa se mostra necessária e eventualmente rentável - e isto porque a experiência de um anterior governo socialista com os ‘pendulares’, após milhões investidos e estudos feitos, se revelou um fiasco. Mas Porto/Vigo e Lisboa/Madrid ninguém sabe para que servirão. Não há estudos sobre a utilização prevista e a relação custo-benefício da sua construção. Depois de tranquilamente nos esclarecerem que, quanto aos custos de construção, a hipótese de a sua amortização ser realizada com as receitas de exploração é “totalmente para esquecer”, a própria secretária de Estado dos Transportes duvida de que, por exemplo, a linha para Madrid consiga ser auto-sustentável. Ou seja, depois de um investimento de dez mil milhões de euros a fundo perdido, preparam-se para aceitar tranquilamente um défice permanente de exploração.
Quanto é que ele poderá vir a ser, ninguém sabe, porque não se estudou o mercado para saber se haverá passageiros que justifiquem três comboios diários para Madrid. Mas, para que os privados, que ficarão com a concessão por troços, não se assustem com a vulnerabilidade do negócio, o Governo garante-lhes antecipadamente o lucro, propondo-se pagar-lhes segundo a capacidade instalada e não segundo a capacidade utilizada.
Isto é, se num comboio com trezentos lugares só trinta forem efectivamente ocupados, o Governo garante às concessionárias que lhes pagará pelos 270 lugares vazios. Todos os dias, três vezes ao dia para Madrid e eternamente, até eles estarem pagos e bem pagos. Eis o que os socialistas entendem por ‘obras públicas’ e ‘iniciativa privada’!
Alguma coisa deve estar tremendamente confusa na cabeça dos socialistas e do engenheiro José Sócrates. Eles não perceberam que não são nenhuma comissão liquidatária dos dinheiros e património públicos em nome dos ‘superiores interesses da economia’ (agora, vai a ria de Alvor, em projecto PIN...). Eles não perceberam que o interesse público não é construir aeroportos e comboios de luxo de que o país não precisa, para ‘estimular a economia’ e encher de dinheiro fácil empresários que não sobrevivem sem o Estado; que não é entregar todo o património natural e a paisagem protegida a especuladores imobiliários sem valor nem qualificação; que não é ‘emprestadar’ o CCB ao comendador Berardo para lhe resolver o problema de armazenamento da sua colecção de arte.
Se isto é a esquerda, que venha a direita!
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