A 27 de Maio de 77, ainda eu não tinha nascido, Luanda acorda ao som de tiros. A população estava nas ruas e havia uma marcha em direcção ao palácio presidencial. Hoje em dia a opinião geral é que se tratava de uma tentativa de golpe de estado liderada por dois homens: Nito Alves e José Van Dunen.
O meu pai era muito próximo de Nito Alves. Enquanto ele (o Nito Alves) foi Ministro da Administração Interna, o meu pai foi o seu chefe de gabinete. A tentativa de golpe, se é que a houve, correu mal e a rebelião foi esmagada. Agostinho Neto, o presidente angolano na altura, disse qualquer coisa como "não perderemos tempo com julgamentos". E assim foi. Logo na noite de 27 de Maio a DISA, a polícia politica, começou as buscas às casas. O meu pai não estava em Angola nesse dia. Estava noutro país ao serviço do Governo. Chegou apenas um dia depois (a 28) e não dormiu em casa. Não era seguro. No dia seguinte, 29 de Maio, ele e a minha mãe (grávida de 7 meses) foram presos. À entrada da prisão foram separados. Nunca mais se viram.
A minha mãe, talvez por estar grávida, foi solta pouco depois. O meu pai não teve a mesma sorte. Foi espancado, torturado e, perante um tribunal, obrigado a confessar crimes. "Não perderemos tempo com julgamentos". Esta espécie de tribunal, ficou conhecida como a Comissão das Lágrimas.
Após o julgamento a TV angolana ainda mostrou o meu pai (Rui Coelho) como um troféu da DISA e do MPLA. Depois fuzilaram-no. No meio de tudo isto, eu ainda tive alguma sorte. Primeiro, porque sobrevivi. Segundo, porque a minha mãe sobreviveu. Terceiro, porque depois de dias à porta de um ministro, a minha mãe conseguiu obter uma certidão de óbito. Ainda hoje não sabemos onde estão os seus restos, se numa vala comum, se no meio da selva, mas mesmo assim lá se fez uma espécie de luto.
É evidente que nem todos os que foram presos, foram mortos. Os sobreviventes, nós, criámos uma associação. A ideia é que ninguém esqueça o que se passou e que um dia se faça justiça e as vítimas sejam homenageadas de alguma forma. Recuperar e identificar os restos mortais parece-me mais difícil, mas quem sabe?
É este o dia, 27 de Maio, que escolhi para fazer o luto ao meu pai. Não sei quando morreu. Sei apenas que tinha 25 anos quando foi morto, menos cinco do que a minha idade actual. Dizem-me que soube que teve um filho (nasci em Agosto). Um rapaz. Quero acreditar que sim. Todos os anos, neste dia, lhe digo a mesma coisa: Rui, Tukayana.
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