Escolas atingidas por "tsunami" legislativo
Armanda Zenhas 2008-02-13
Relembrando a linguagem futebolística, poderíamos utilizar, com propriedade, neste contexto, que a meio do jogo não se mudam regras. Com efeito, que sentido faz mudar regras a meio de um ano lectivo? As escolas têm vindo a ser abaladas por um verdadeiro tsunami legislativo. Em maré de grande fecundidade legislativa do Ministério da Educação (ME), abrangendo as mais diversas áreas e temas, desde a educação de alunos com necessidades educativas especiais, ao ensino da Música, passando pela adopção de manuais, sobre tudo tem saído legislação. Sem dúvida, aquela que mais tem (pre)ocupado as escolas tem sido a que se refere à avaliação de desempenho dos professores e o novo Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior, não esquecendo um outro diploma muito importante, ainda em discussão pública, o referente à gestão das escolas.
Este é um estranho ano lectivo.
Como todos os professores, habituei-me a considerar os anos como começando em Setembro, ou seja, vejo-os sempre como anos lectivos e, raramente, como anos civis. Neste momento, sinto-me em pleno, demorado e doloroso efeito de jetlag, como se tivesse atrasado muito fusos horários de uma assentada.
Depois de um arrasador 1.º período (Diário - desabafo de uma professora), ao chegar às escolas, em Janeiro, os professores depararam-se com este tsunami legislativo, para pôr em prática agora, quando o ano lectivo já vai longo, carecendo a imensa e fundamental legislação saída de muita regulamentação (muitas reuniões de conselho pedagógico, de departamentos curriculares e outras), sem a qual não poderá entrar em vigor, apesar de ser uma condição que tal aconteça.
Começando um ano lectivo em Setembro e sendo necessário existir, não apenas estabilidade do corpo docente, mas também estabilidade de regras, princípios e normas orientadoras da política e da actividade das escolas, seria de esperar que a legislação que regulamenta a política educativa saísse sempre no ano lectivo anterior, com tempo suficiente para ser analisada e para a sua aplicação nas escolas ser feita de forma reflectida e organizada. Relembrando a linguagem futebolística, poderíamos utilizar, com propriedade, neste contexto, que a meio do jogo não se mudam regras.
Com efeito, que sentido faz mudar regras a meio de um ano lectivo?
Não me proponho fazer uma análise de toda a legislação saída (seria uma tarefa hercúlea), nem mesmo uma reflexão exaustiva de um único diploma.
Gostaria, contudo, de exemplificar os inconvenientes deste tsunami legislativo, pegando apenas no Decreto Regulamentar nº 2/2008, de 10 de Janeiro, que se refere ao regime de avaliação do pessoal docente, e no Decreto-Lei 3/2008, sobre o novo Estatuto do Aluno.Começando pelo Estatuto do Aluno, deter-me-ei somente sobre as faltas.
No início do ano lectivo, sabíamos que havia faltas justificadas e faltas injustificadas, e que cada tipo de faltas tinha implicações diferentes. No novo Estatuto, a distinção entre os dois tipos de faltas é muito ténue e ambos ficam sujeitos ao mesmo tipo de intervenção, que passa pela realização de uma ou duas provas na(s) disciplina(s) em que se exceder o número regulamentado de faltas, podendo essa(s) prova(s) levar à não aprovação, mesmo que as faltas sejam por doença: tratamento idêntico para quem foi operado, por exemplo, e para quem anda a jogar à bola nas horas das aulas. Segundo o artigo 59.º deste diploma, esta lei aplica-se apenas às situações constituídas após a sua entrada em vigor.
Assim, fica-se na dúvida sobre os procedimentos a ter em relação às faltas dadas no 1.º período. Já contam para as provas? Não contam? Quanto à avaliação de desempenho, apesar de ser um processo novo e muito complexo, ela surge em Janeiro para implementação imediata nas escolas. Isto, apesar de faltar ainda a publicação de inúmeros normativos regulamentadores previstos no próprio Decreto-Lei, ou seja, pretende-se avaliar sem que os avaliados saibam, de forma clara e objectiva, sobre que aspectos recai a sua avaliação e os avaliadores saibam, inequivocamente, que informação devem recolher e como a devem recolher.
Diversas escolas e agrupamentos e o próprio Conselho de Escolas consideraram inexequível a aplicação deste modelo nos prazos e com os procedimentos previstos pelo ME.
A título de exemplo, adiantarei que a lei começava por exigir que as escolas ou agrupamentos elaborassem, num prazo muito curto, instrumentos de registo normalizados de toda a informação relevante para a avaliação de desempenho, tendo em conta as recomendações formuladas pelo conselho científico para a avaliação dos professores. Ora esse conselho continua sem estar constituído à data em que escrevo este artigo.
Para o ME, foi fácil resolver a questão: não há conselho, nomeia-se a sua presidente e esta emite as tais normas. E assim dá o ME o exemplo do rigor e do cumprimento que quer impor aos professores! Face à contestação surgida, o ME acabou por flexibilizar os prazos intermédios, mas não os finais, desta avaliação, não obstante continuar sem dar solução/resposta a todos os problemas apontados.
Grande parte da legislação que tem saído no decurso deste ano lectivo, nomeadamente a que analisei (bem como outras orientações ministeriais, como é o caso, por exemplo, do Plano TIC ou do módulo Cidadania e Segurança) implicam, inclusivamente, modificações nos documentos fundamentais que regem a vida e a política das escolas, nomeadamente o Projecto Educativo, o Plano de Actividades e o Regulamento Interno, agora transformados em páginas em constante transformação, ao invés de serem (como deviam) documentos com uma determinada duração (plurianual ou anual, conforme os casos), a fim de garantirem a necessária estabilidade.
Por outro lado, os professores, particularmente as estruturas de direcção e de gestão pedagógica das escolas, vêem-se envolvidos em constantes reuniões para lerem, analisarem, interpretarem, entenderem, até, o que se pretende, para depois procederem à necessária regulamentação e/ou implementação. Nos tempos que correm, o trabalho de um professor esgota-se nesta interminável tarefa de decifração dos desígnios legislativos, impedindo-o de se dedicar ao trabalho pedagógico com os alunos.
Ano lectivo e ano civil não são sinónimos.
Oxalá as tomadas de posição de diferentes entidades deste país, as providências cautelares interpostas (para já, pelo menos, duas aceites pelo tribunal) e outras iniciativas façam inverter os efeitos deste tsunami legislativo e proporcionem condições de trabalho adequadas nas escolas.
Armanda Zenhas
Mestre em Educação, área de especialização em Formação Psicológica de Professores, pela Universidade do Minho. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, nas variantes de Estudos Portugueses e Ingleses e de Estudos Ingleses e Alemães, e concluiu o curso do Magistério Primário (Porto). É PQND do 3.º grupo da Escola EB 2,3 de Leça da Palmeira e autora de livros na área da educação. É também mãe de dois filhos.
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