BEM-VINDOS A ESTE ESPAÇO

Bem-Vindos a este espaço onde a temática é variada, onde a imaginação borbulha entre o escárnio e mal dizer e o politicamente correcto. Uma verdadeira sopa de letras de A a Z num país sem futuro, pobre, paupérrimo, ... de ideias, de políticas, de educação, valores e de princípios. Um país cada vez mais adiado, um país "socretino" que tem o seu centro geodésico no ministério da educação, no cimo do qual, temos um marco trignométrico que confundindo as coordenadas geodésicas de Portugal, pensa-se o centro do mundo e a salvação da pátria.
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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

LUANDA - PALCO DE HORRORES


A norte de Angola, na aldeia Kaleba, Francisco Karicukila esconde Sita Valles.
Não se lembra do ano em que nasceu, mas sabe que em 1966 já lutava pela libertação de Angola. Foi preso e torturado pela PIDE no campo de São Nicolau, onde conheceu Zé Van Dunem, companheiro de clandestinidade. Depois da independência, a UNITA por duas vezes arrasou a aldeia, matou mulheres e crianças. Agora os seus sonhos caíam por terra, os antigos perseguidos vestiam-se de perseguidores, calavam os seus próprios companheiros. Mas Sita ainda não perdeu as esperanças. «A revolução é assim: lenta», dizia-lhe. Luanda tornava-se palco de horrores.
Todos os que se haviam cruzado com Sita têm a vida por um fio. As cadeias enchem-se. Costa Martins, ex-ministro do Trabalho de Vasco Gonçalves, exilado em Angola desde 25 de Novembro de 1975, é novamente embrulhado pela História. Publicamente, é acusado de pertencer aos serviços secretos franceses e de estar do lado dos fraccionistas. Mas, na cadeia, acusam-no de pertencer ao PCP e de ser espião do KGB. É um misto de tragédia shakespeariana e ópera bufa. Na sala de tortura, elementos da DISA, portugueses e angolanos, apuram técnicas. Carlos Jorge, Pitoco e Eduardo Veloso espancam-no durante um interrogatório algo insólito: se Spínola presidia ao Conselho de Ministros em Portugal, se chamou corrupto a Neto, se José Eduardo dos Santos é das suas amizades...
Os objectos de tortura são um chicote e um espigão de ferro, aos quais chamam Marx e Lenine. O capitão de Abril ainda guarda no corpo as cicatrizes, e não percebe como sobreviveu. Um dia levam-no de jipe para uma praia. Guardas armados até aos dentes ordenam-lhe que saia para apanhar banhos de sol. Mas o militar, que conhece a traição de longa data, recusa-se a sair.
Em Junho, Sita Valles assina a sua sentença. De Kaleba, envia, através de um filho de Karicukila, uma mensagem para a família Van Dunem. Entretanto, o seu irmão Edmar já tinha sido preso, e a mulher dele, que recebe o bilhete, aposta numa troca de vidas e entrega a missiva ao director-adjunto da DISA. «Na carta, ela dizia à secretária de Agostinho Neto para pedir aos soviéticos que lhe preparassem a fuga», garante Onambwe. O mensageiro é preso, e depois de torturado encaminha os militares para a cubata de Karicukila.
A 16 de Junho, Sita e Van Dunem entram de mão dada no Ministério da Defesa. Emagrecera, mas a paixão não abrandara. Amadeu Neves, que também lá se encontra preso, recorda-a nada intimidada. Quando alguém lhe oferecia comida, respondia: «A um comunista não se dá leite, dá-se porrada.»
Entretanto em Portugal o PCP, acusado por muitos de ter mexido os cordelinhos em Angola, lava daí as mãos. Em Agosto, as Edições Avante publicam uma brochura do MPLA. É a versão oficial do 27 de Maio. «Sita Valles, vinda de Portugal, da União dos Estudantes Comunistas, sem o mínimo conhecimento das realidades da nossa luta e do nosso Movimento, é colocada por Nito Alves à testa deste esquema e imediatamente toma nas mãos o comando das operações.»
Edgar Valles, que saíra de Angola meses antes do 27 de Maio, é contactado por Pedro Serra, do sector intelectual do PCP. «Pediu-me para suspender a militância e não aparecer nas sedes, a fim de evitar especulações.» Os 4200 exemplares do seu livro A Crise no Apartheid, que estava para ser editado nesse mês pela Seara Nova, foi destruído.
José Garibaldi, responsável da editora, explica:
«Agostinho Neto tinha muitas amizades entre os seareiros
Todas as portas se fecham. O almirante Rosa Coutinho, antigo membro do Conselho da Revolução, assegurou ao irmão de Sita que nada havia a fazer. Pelas informações que lhe chegavam, ela já tinha sido executada. A extrema-esquerda portuguesa salta para a arena e crucifica Sita. Apresenta-a como a mentora política do «golpe de estado» e traça-lhe um perfil de Mata-Hari. A conspiradora dormira pelo menos com dois dirigentes do MPLA: Nito e Van Dunem.
No jornal «Página Um», a 4 de Agosto, lê-se: «A conspiração nasce no quarto.» E, no mesmo número, são publicadas cartas dos «criminosos reaccionários», em que estes admitiam ter dado ordens para matar comandantes do MPLA. Seguem a versão oficial, perdem a memória dos métodos utilizados pela PIDE para arrancar confissões. Dias antes, às cinco da manhã de 1 de Agosto, sem julgamento, depois de ter sido torturada e violada por vários homens da DISA, Sita Valles, aos 26 anos, morria. Recusa a venda e olha o pelotão de frente:
«A cabra parecia que não queria morrer»
gabava-se nessa noite um português das fileiras da DISA. Ao lado de Sita, compartilhando o mesmo destino, está José Van Dunem. Não se sabe onde foram enterrados: os seus cadáveres estão numa das muitas valas comuns, cavadas de norte a sul do país para afogar a rebelião.
Durante esse ano, jovens e velhos militantes do MPLA, ministros e chefes militares, desaparecem.
Um tribunal militar, chefiado pelo coronel João Neto (Xieto), chefe de Estado-Maior Geral, decide quem deve ou não sobreviver.
A corrupção campeia: guardas das prisões e chefes de operações da DISA saqueiam e apropriam-se de casas e carros dos presos.
A madrugada de 23 de Março de 1978 fica na História como «a noite das estrelas». Quando Pitoco entra na cadeia de S. Paulo, Costa Martins sabe como tudo vai terminar. Era a última vez que veria Edmar, o irmão mais velho de Sita. A sangria estende-se a todas as prisões de Luanda. Jeitoeira vê as listas dos condenados que chegam do Tribunal Militar. Nos cadernos não constam acusações, só o nome próprio e, ao lado, o nome de guerra das vítimas.
Eram assinadas pelos dois chefes da DISA, "Rodrigues João Lopes (Ludy) e Onambwe, e pelo Presidente da República.
«Nessa noite, Neto mandou matar 300 pessoas. A partir daí
não se matou mais ninguém» - «flash-back» de Jeitoeira.
No dia seguinte, as carrinhas voltam cheias de sangue e os mercenários continuam a apagar os vestígios do crime.
Em 1978, Neto sabe que tem os dias contados: os médicos diagnosticam uma cirrose a este bebedor inveterado.
O Presidente sacode à última hora as culpas que lhe são atribuídas e entrega alguns dos seus fiéis seguidores. Ludy e Onambwe, os chefes da polícia secreta, caem em desgraça.
No mesmo ano, são nomeadas comissões de inquérito para averiguar os «excessos» cometidos na sequência do 27 de Maio, e juízes militares deslocam-se do norte ao sul de Angola e contam as vítimas.
Um deles, José Nunes, investiga os massacres cometidos no Leste de Angola. Quando chega a Luena, província do Moxico, um prisioneiro do «centro de recuperação», que deveria ser fuzilado no dia seguinte, conta-lhe como decorreu a vida ali durante esse ano.
Centenas de homens tinham morrido na mira da espingarda de Maninga, o chefe do centro. E os que escaparam, lutavam como podiam pela sobrevivência. Por uma mandioca qualquer preso se oferecia para coveiro. E era o próprio que, à noite, fugindo à vigilância dos carcereiros, levava os outros prisioneiros à vala onde se encontravam os corpos dos companheiros. Desenterravam os cadáveres para os comer: era a única forma possível de pôr cobro à fome.
«Foi um verdadeiro genocídio, em Angola devem
ter morrido umas 30 mil pessoas» - afirma José Nunes.

Sita Valles acreditava na revolução, e essa aventura levou-a à morte. Passados 15 anos, o seu destino continua envolto em mistério. O governo angolano nunca entregou à família a certidão de óbito, e as notícias variam. Uns dizem que estava grávida quando morreu, outros que não, que teve o filho antes de ser fuzilada, e há mesmo quem afirme que não morreu. «Pode ser que ainda esteja viva», deseja Maria Lúcia, a mãe.
Não foi difícil condená-la, e agora não é difícil desculpá-la. Mendes de Carvalho, embaixador angolano na ex-RDA, acusado de ser um dos principais repressores do 27 de Maio, viu Sita pela última vez no Ministério da Defesa, onde estava a ser interrogada. «Era uma mulher tão linda e fresca, não merecia morrer». Sobe ao palco um único culpado. «A DISA é a responsável pelo massacre que houve em Angola. Só da Juventude do MPLA morreram milhares e milhares de jovens», denuncia o embaixador. Mas o jogo não pára. Pitoco, que foi expulso da polícia secreta em 1979, contra-ataca: «Pergunte ao Mendes de Carvalho quem matou o Fortunato».
Pedro Fortunato era o Comissário Provincial de Luanda. Pitoco quer fugir de Angola, sente que a sua vida está por um fio, que o querem matar. O destino não o poupou, está a ficar cego, mas não perdeu vícios antigos:
«Se me pagarem,
conto a verdadeira história dos mortos do 27 de Maio».
Não tem rebates de consciência, apenas cumpriu ordens; quando actuava não levava a farda da DISA, trajava de militar. O hábito fazia o monge. Pitoco faz equilibrismo, agarra-se ao que pode e joga para a arena mais nomes. Vítor Jeitoeira é o atingido. E este? Que não, que não fez nada, até salvou alguns condenados! Tinha marchado na tropa com Dodó Kitumba, um dos acusados de fraccionismo, gostava dele, e quando descobriu que o outro tinha os dias contados, forjou uma história e vendeu-a a Ludy:
«Não o mates, porque o tipo tem diamantes escondidos no valor de
50 milhões de dólares e é o único que nos pode indicar o esconderijo

É Eduardo dos Santos, quando assume as rédeas do país, que faz o ajuste de contas. Alguns ministros fiéis ao seu antecessor são afastados do governo. Entre eles, Iko Carreira, ministro da Defesa, acusado por Nito de ser traficante de diamantes.
Luís dos Passos, que dirigiu o assalto aos quartéis e a tomada da Rádio Nacional em 27 de Maio, só volta a Luanda em 1990. Durante 13 anos viveu escondido na mata, a norte de Angola. Comeu raízes de árvores, sofreu de paludismo, mas sobreviveu.
«Se a DISA não tivesse sido extinta, garanto que ele não ficava organizações
internacionais para que o Governo seja levado a esclarecer tudo o que se passou, mas as autoridades de Luanda permanecem mudas.
Em Dezembro último, João Van Dunem, jornalista da BBC, requer ao ministro da Justiça angolano, Lázaro Dias, certidões de óbito do seu irmão José e de Sita. O governante limita-se a remeter o assunto para os seus colegas da Defesa, da Saúde e da Segurança, alegando:
«Sabido que o Ministério da Justiça só emite certificados de óbito com base em notas ou nótulas de médicos a atestar o óbito - o que não aconteceu -, solicito a informação sobre se têm algum conhecimento do falecimento das pessoas acima referidas
Longe das intrigas de Estado, em Kaleba, Francisco Karicukila envelheceu e perdeu a esperança. Ouviu dizer que a União Soviética, a mãe de todas as revoluções, está moribunda. Também ele acreditou no socialismo e em Neto, mas na sua aldeia os homens trabalham na lavra e bebem vinho de palma para esquecer a fome.
A casa onde escondeu Sita está agora abandonada e cercada de capim, o filho que levava as mensagens dos fugitivos também foi fuzilado, e ele foi torturado durante dois anos.
Com um sorriso triste, recorda as últimas palavras de Sita: «Fomos traídos, mas um dia haverá igualdade no nosso país.»*

*A Revista "O Expresso"

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