Vale a pena transcrever uma carta aberta ao nosso Primeiro Ministro do meu amigo Valério Guerra, "chicoronho" como eu, um amigo íntegro e amante da verdade.
Não pode continuar a valer tudo, mesmo que ideologicamente nos custe.
Não pode haver duas medidas: a dos poderosos e a do povo ralé.
No fim, no fim, não devemos viver - depois de um 25 de Abril, como se ainda fossemos carneiros.
Nada mais me move senão o respeito que acho que merecemos, nós, o povo que paga impostos, deste "diz que é um país".
Valério
Carta Aberta ao
Excelentíssimo Senhor José Sócrates,
Primeiro-Ministro de Portugal
Sou português, africano. Natural do sul de Angola, cresci perto dos elefantes e esta é uma das razões de lhe escrever. Como sabe, os elefantes não esquecem e, o meu neto, educado em "ambiente" africano, o mais certo é não esquecer, também. Como a minha filha mais nova, a acabar o curso numa faculdade pública prestigiada, também não esquece.
E este é um dos meus problemas. Deixou de haver tertúlias sossegadas e conversas equilibradas cá em casa. Bastou para tanto, a história da sua licenciatura.
Sabe, eu quase sou descendente dos primeiros colonos que rumaram ao Lubango. O meu pai nasceu em 1917 e o meu avô foi criancinha para aqueles sertões. Já deve estar a ver como fomos criados: numa simbiose entre respeito, atenção com os idosos, rigor, honradez e verdade. A trapaça era muito mal vista, e alguns funantes sofreram com isso. Fomos educados na famosa pureza da água da Senhora do Monte, na cristalina transparência, no pão pão, queijo queijo. Foram estes valores que transmiti aos filhos, e espero que continuem para os netos.
E aqui começa o desassossego. A minha filha, até porque a nossa situação económica não é nada folgada, quer vir para casa. Para não gastar tanto, diz, insiste que vai falar com os professores para fazer os exames em casa. Podiam ser enviados pela Internet, em vez do fax, que é mais dispendioso. Não consigo demovê-la. Já lhe expliquei que se fosse deputada, talvez fosse possível e, mesmo assim, não seria para qualquer uma. Ou secretária adjunta de algum ministro, mas isso também seria difícil porque não temos partido: vamos votando.
E as altercações começam a subir de tom. É que ela quer também, médias altas, sem ter de estudar muito, sem ter de passar horas e horas agarrada às sebentas. Como não conheço nem reitor nem vice, ou, pior ainda, ela não tem nenhum professor a dar-lhe quatro cadeiras (quase do género – compra uma leva quatro!), isto está a tornar-se frustrante.
O senhor é o Chefe do Governo e, como tal, respeito-o e considero-o. Agora, não sou, nem devo ser obrigado, a imbecilizar a inteligência. Nem milhares e milhares de jovens que lutam denodadamente para se licenciarem, o devem fazer. Com essa obscuridade de equivalências e de cadeiras por atacado, que o senhor deseja transformar em exemplo, mais um seu ministro, fico com mais um problema: como é que explico aos meus filhos, os nossos antepassados e a pureza da água?
Sabe, sem história, sem exemplos, os valores perdem-se, alteram-se, e começa aí a desgraça, o declínio de um povo: passa a ser a lei do mais forte, de quem está no poleiro, de quem pode condicionar… em última instância, ao absurdo de maioria ser igual a absolutismo. E aqui é grave, muito grave, e não deve ser novidade para si.
Como é que me desenvencilho desta situação? A minha filha fala-me de si. Eu explico-lhe que isso é uma confusão. Que errar é humano, e pôr a culpa em alguém é estratégia, uma refinada estratégia - todos o sabemos!
Entretanto, ela não se cala. Diz que eu é que não quero ver. Que o senhor, em funções de muita responsabilidade e trabalho – trabalho de 24 horas, é o que dizem, ainda fez os exames todos num só semestre, num só mês, praticamente. Só de uma vez, fez quatro. Deve ter sido extenuante, para não dizer sobre-humano. E insiste nisto, porque acha que foi por ter feito em casa, ou no trabalho, fora do expediente, pois claro, como aquele de inglês, entregue depois da data de licenciatura.
Com isto, fico sem argumentos para a minha tradição de rigor, clareza, verdade, para não dizer de igualdade e, claro, perco a disputa. E isso é mau para quem é cumpridor. Fica-se devastado interiormente. Os filhos acham que falhámos, porque lhes ensinámos o caminho mais difícil e não o sol doirado da trapalhada, do vale tudo.
Há um presidente que, com malabarismos de relatórios, justificou uma guerra. O senhor condena-o. Acho muito bem! É assim que deve ser. É pena é ter ficado por aqui. Claro que uma coisa não tem nada a haver com a outra, dir-me-á. Mas tem: é uma questão de comportamento social, de nos sentirmos bem ou mal com a inverdade, com o baralha e torna a dar.
E agora, se não se importa, volto ao meu neto. Como os elefantes, já guardou datas e equivalências que baralharam as nossas conversas. Depois, como é que lhe vou incutir que não se deve copiar nas provas, fazer cábulas, etc., etc. Coisas em que a tentação de estudante é fértil!
Lá voltamos ao tal rigor, que o senhor gosta tanto, mas que vou ter dificuldade de explicar ao miúdo. Ele vai responder-me que com mais verdade ou menos verdade, também ele, sabe-se lá, poderá vir a ser presidente. E, perante isto, faço o quê? Lá vai a tradição, até da boa conduta, por água abaixo. Tantos anos, desde o meu avô, se calhar, desde o avô dele, em sermos pessoas de bem, e depois, por uma trapalhada que não entendo nem tem explicação lógica, desmorona-se um rumo educacional! Passa a haver desculpa para actos menos correctos – acabamos por cair nisso -, desde que depois se vá a votos, se tenha uns milhares de votos e, já está! Vira-se santinho! Será que é por isso que alguns autarcas – inocentes até prova em contrário -, ganharam eleições? Será que o povo já interiorizou que vale tudo e que os votos limpam mais branco? Que a Ética, nem falo na Moral, não tem raiz na Razão e sim no sufrágio dos votos?
Quero crer que não. Por isso lhe peço ajuda. É que isto tem transtornado os nossos serões, para além da situação económica, mas disso não deve ser o culpado! São os estrangeiros! Num aparte: tem alguma coisa a haver com o turismo?
Tem sido desgastante esta dualidade "orwelliana". Outro qualquer funcionário já teria um processo disciplinar, estaria a ser investigado pelas instâncias adequadas, etc. No seu caso, muito pouco se passa: quase somos a "Alice no país das maravilhas". E isto não é bom. Alguém deve ter razão. Não podem ser os dois lados desta moeda enegrecida. Até a democracia fica mal vista! Também não é justo para si! Deve ter razão, mas com essas suspeitas todas, passa a ser o que não quer que achemos que é. E não é justo! Mande logo entrar os cabrestos para recolher a infâmia - se for infâmia, para que venha a verdade, presa que está nos curros.
O que começa a doer, é que as pessoas já se aperceberam que o senhor não é o que quiseram fazer de si. Exceptuando os ortodoxos e os fanáticos, o bom senso começa a sofrer.
E lá estou eu, outra vez, metido numa embrulhada: a de explicar que os políticos, se não são sérios, é por uma questão de estratégia, etc., etc.
Assim, Senhor Primeiro-Ministro, como não se quis dar ao trabalho de solicitar uma sindicância, uma investigação (o nome, era consigo: também não é por aí!), independente – independentíssima, para apurar os factos relativos à sua licenciatura, ao menos incentive a senhora Procuradora a ser célere. É certo que está um pouco esquecido e baralhado, já lá vão uns anos, mas há todo o interesse de não se andar a arrastar este episódio. É que nunca mais tenho sossego, e há outros assuntos para conversar!
Lembrei-me agora. Porque não põe em tribunal a UNI, já que é ela que baralha os documentos (não é ela que os passa? Ou não será?), mais os jornais e os "blogues" que andam a mostrar coisas em que a bota não bate com a perdigota?
Para não falar noutra solução que lhe granjearia prestígio: candidatar-se ao exame, ou lá o que é, à Ordem dos Engenheiros. Inteligente como é, fazia-o com uma perna às costas, com distinção e matava a coutada inteira. Esta é uma boa ideia, não acha?
Isto resolvia-se, e eu tinha menos um problema para educar o meu neto!
Esperançado de que encontre tempo para atender o meu pedido
Seu
Valério Guerra
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